55 Teses Sobre os Evangélicos e as Eleições de 2018
9 min readNov 3, 2018
Inspirado no formato das 95 Teses de Martinho Lutero e na comemoração de 501 anos da Reforma Protestante, proponho as seguintes teses:
- Minha intenção não é debater se Bolsonaro é um “cristão verdadeiro”. Jesus fala que, pelos frutos, conheceríamos se a árvore é boa ou má (Mateus 7:18–20).
- Mesmo que se esboce alguma conclusão pessoal sobre a espiritualidade de Bolsonaro, a conversão é fruto da Graça mediante a pregação do Evangelho (Efésios 2:8–10; Romanos 1:16; 10:14).
- Sendo assim, Bolsonaro pode não ser um “cristão verdadeiro” agora, mas “do Senhor vem a salvação” (Jonas 2.9), o que significa dizer que ainda há tempo para arrependimento.
- E como é mandamento que o cristão ore por seus governantes para que se tenha um bom governo e “todos os homens cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Timóteo 2:1–5), peço a Deus que que toque o coração de Jair Bolsonaro, no que tange a um bom governo e ao Evangelho de Jesus Cristo.
- Tendo disto isto, meu propósito aqui é discutir o quão “evangélico” ou “cristão” é o programa político de Bolsonaro, e o apoio que ele recebeu em virtude de representar “pautas dos interesses dos cristãos” (como nesta imagem do jornal Mensageiro da Paz). No entanto, é preciso fazer uma ressalva.
- Segundo o último censo do IBGE (2010), os evangélicos eram 22,2% da população brasileira, sendo a estimativa de 42.310.000 pessoas.
- De acordo com a última pesquisa do IBOPE, antes do segundo turno, 59% dos evangélicos declararam intenção de voto em Bolsonaro. Este é o número mais “pessimista” em relação ao apoio evangélico.
- Seguindo o IBOPE, o apoio a Bolsonaro consistiria em 24.962.900 do total de evangélicos, considerando os dados do censo de 2010 do IBGE.
- Tendo Bolsonaro recebido 57.797.277 votos, somente os evangélicos consistiriam em 43,2% dos eleitores do candidato do PSL.
- Ressalto que nem todos os que votaram no Bolsonaro tomaram sua decisão baseados no mesmo critério.
- Em 1 Crônicas 12:32, o texto relata que no exército de Davi existiam homens que eram “entendidos das ciências dos tempos para saberem o que Israel deveria fazer”.
- A ideia é de que estes homens, a partir de seus juízos, indicavam quais seriam as decisões mais úteis à nação. O texto não diz que estes juízos eram ordens explícitas de Deus na Lei, ou reveladas por Ele.
- Contudo, pode-se inferir que eram interpretações possíveis a partir da Lei.
- Isto implica em dizer que podemos pensar em aplicações da Lei que fossem certas, erradas e possíveis.
- As aplicações certas da Lei sendo aquelas que não contradizem as ordens explícitas de Deus.
- E as aplicações erradas da Lei sendo aquelas que contradizem as ordens explícitas de Deus.
- Já as aplicações possíveis são aquelas em que a existência de divergências interpretativas não implica em, NECESSARIAMENTE, uma desobediência a Deus (por exemplo, a decisão de como cobrar impostos).
- Tendo dito isto, e lembrando que nem todos os evangélicos votaram no Bolsonaro pelas mesmas razões, é preciso reconhecer que, aqueles que afirmaram ter votado a partir de seus juízos sobre a política brasileira podem ter juízos corretos, errados ou possíveis sobre o contexto político nacional.
- Estes, pelo que se percebe, são conscientes da falibilidade de suas leituras, e estão abertos ao reconhecimento do erro.
- Além disso, parecem entender Bolsonaro como mais uma opção política dentre outras, e não como “o representante dos valores cristãos”.
- Feita esta ressalva, retorno para a discussão sobre a “política cristã” de Bolsonaro e o apoio evangélico em virtude de sua campanha baseada em “valores cristãos”.
- Um número considerável dos apoiadores percebeu em Bolsonaro alguém que representasse “os valores cristãos”. Como alguém que conhece a história de nomes como Abraham Kuyper, Charles Malik, Dietrich Bonhoeffer, e Martin Luther King, Jr., discordo veementemente dessa afirmação.
- Abraham Kuyper foi o vigésimo primeiro-ministro holandês, entre 1901–1905. Kuyper fundou o Partido Antirrevolucionário em 1879.
- Inspirado pelo profundo calvinismo de Kuyper, o partido de entendia que nenhuma ideologia era “compatível” com o Evangelho de Jesus Cristo. A intenção de Kuyper era propor uma alternativa que não fosse reacionária, como o conservadorismo, nem revolucionária, como o liberalismo.
- No entanto, Bolsonaro, em seu plano de governo, equipara os “valores cristãos” aos do liberalismo e do conservadorismo.
- Abraham Kuyper também lutou na esfera da educação. Fundou a Universidade Livre de Amsterdã em 1880 para que a educação fosse livre das influências totais da Igreja Reformada Holandesa e do Estado, e sua crença firme na soberania de Cristo sobre a Criação o permitia defender a existência de “pluralidades confessionais”. Diz Kuyper, no Programa do Partido Antirrevolucionário:
- Se um judeu desejar protestar contra o Messias dos cristãos, ou um muçulmano contra a Santa Escritura, ou um darwinista contra a ideia de criação — ou, da mesma forma, se um positivista quer protestar contra a raiz onde todas as coisas santas se sustentam em fé — todos devem ser livres para fazê-lo. Livres porque, uma vez que o governo comece a capinar, ele pode facilmente se enganar e não saber separar o joio do trigo… Sobretudo, livres, porque o cristianismo mesmo necessita deste duelo constante com os campeões de outros campos e deve provar sua superioridade moral triunfando estritamente em uma batalha espiritual… mesmo se uma igreja de ateus desejar estabelecer-se, ela deve ser tolerada. Nenhuma proteção especial, mas também nenhum impedimento ou repressão.
- No entanto, Bolsonaro, em seu plano de governo, diz que “todos os cursos [universitários] devem estimular o empreendedorismo”. Isso ainda é manter a educação sob os auspícios de experiências do Estado, privilegiando algumas perspectivas sobre outras.
- Ainda sobre educação, Bolsonaro diz pretender seguir os exemplos dos Tigres Asiáticos, por terem “dado certo”, porque “o governo liberal democrata” significa uma “aliança entre ordem e progresso”.
- O exemplo dos Tigres Asiáticos é imitado ignorando-se os contextos históricos de sua formação. Cito aqui William Petty, que escreveu em seu livro Aritmética Política, de 1690: “as mesmas causas que produzem carência em um lugar, frequentemente, produzem abundância em outro”.
- Sendo assim, a proposta de Bolsonaro não corresponde com a perspectiva cristã de convivência entre pluralidade de ideias e com a pluralidade estrutural do mundo criado, como se pode ver em Kuyper.
- Charles Malik foi um libanês, diplomata, que foi representante do Líbano na ONU, e elaborou o rascunho da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948).
- Malik era um cristão da ortodoxia grega, mas de uma consciência profunda no que concerne aos dogmas cristãos mais básicos como fonte da unidade cristã, e entre estes dogmas, estava a percepção de que todo ser humano é feito à imagem e semelhança de Deus.
- Para Malik, isso conferia a todo ser humano liberdade, dignidade, e igualdade, que são intrínsecos e se mantêm, mesmo sob condenação judicial.
- No entanto, Bolsonaro, em seu plano de governo, fala em “redirecionamento dos direitos humanos”, ressonando suas declarações recorrentes que “direitos humanos são para humanos direitos”.
- Se somos “humanos direitos”, ou seja, se o que fazemos é o que nos torna humanos, a proposta de Bolsonaro não encontra ressonância coma ideia da Imagem de Deus na humanidade como garantidor permanente de dignidade, como se pode ver em Malik.
- Dietrich Bonhoeffer foi um pastor luterano alemão que apoiou a resistência (Abwher) ao nazismo, tendo ele, eventualmente, se tornado agente secreto da resistência.
- A criação da Igreja Confessante (1933), uma ideia proposta por Bonhoeffer e outros teólogos, foi uma resposta ao projeto de Hitler de uma igreja nacional vinculada ao partido nazista (os “Cristãos Alemãos”). Bonhoeffer disse, então, contra a instrumentalização política da igreja, que “Jesus Cristo, não homem algum ou o Estado, é o nosso único Salvador”.
- No entanto, Bolsonaro, em seu plano de governo, faz uso dos “valores cristãos” para uma libertação política.
- Assim, a instrumentalização da política para uma libertação total contradiz a perspectiva cristã da soberania de Cristo sobre a realidade e a relativização do potencial das ações políticas, como se pode ver em Bonhoeffer.
- Martin Luther King, Jr. é conhecido por sua militância pelos direitos civis, especialmente pela causa negra, no período entre 1954–1968.
- King, pastor batista, disse, em um discurso em 1967, que “antes de ser chamado para liderar o movimento de direitos civis, fui chamado a ser pregador do Evangelho”. Ele via sua participação na política como uma implicação de crer no Evangelho — se a redenção de Jesus é a redenção do “homem como um todo”, isso inclui a política.
- Assim, King acreditava que a missão da igreja era a de propor uma tática de não-violência, que procurasse ser pacificadora e reconciliadora, imitando a vida de Cristo e seguindo o Sermão do Monte (Mateus 5.9).
- Partindo desse ponto de vista, King afirmou que a igreja não deveria se alinhar ao Partido Republicano, nem ao Democrata ou qualquer outro, pois “em nenhum partido partido se encontra a plenitude da vontade de Deus, e todos têm fraquezas”. Portanto, a igreja deveria trabalhar na reconciliação em Cristo que transcende disputas políticas, e lidando com a manutenção da busca do bem comum.
- No entanto, Bolsonaro, em seu plano de governo, ao ter como lema “Brasil Acima de Todo, Deus Acima de Todos”, impõe uma linguagem em que Deus estaria ao lado do candidato do PSL, o que indica que aquele que discorda de seu projeto não estaria do lado de Deus.
- Essa linguagem de exclusão é percebida, em seu plano de governo, quando se fala de “expurgar a militância de esquerda”, ou em declarações como “fuzilar a petralhada”. Sendo assim, a política de Bolsonaro não reflete o papel reconciliador que a igreja tem na política, como se pode ver em King.
- Depois deste esforço comparativo, pode-se dizer que o plano de governo de Bolsonaro não é “representante dos valores cristãos” no sentido de ser inspirado nas manifestações históricas de cristãos na política contemporânea, mas, sim, um programa com influências do conservadorismo americano pós-1968, especialmente pelo caráter liberal e “anticomunista”, com matizes de nacionalismo e positivismo, que estão na base da formação da nossa República e da educação do Exército.
- Portanto, os evangélicos que apoiaram Bolsonaro por ser “representante dos valores cristãos”, incorrem nos mesmos erros do candidato do PSL: uma visão reducionista do mundo criado por Deus e da política, e uma visão ilegítima da participação da igreja.
- No capítulo 1 de Gênesis, vemos Deus criar um mundo que é estruturalmente diversificado, com inúmeras espécies de animais e plantas, e ordena ao homem e à mulher que “dominem” a natureza. Santo Agostinho, ao ler o texto, conclui que a criação tem “potencialidades”, a serem desenvolvidas pela ação humana (este é o “domínio” sobre a natureza), com “direcionamentos” distintos.
- Existe, portanto, a possibilidade da coexistência de diversos “direcionamentos” a partir da mesma ideia, conceito ou matéria. Ao fazer a conflação entre a fé cristã e o plano de governo de Bolsonaro, nega-se a pluralidade de perspectivas e ações presentes e possíveis no mundo criado por Deus.
- Ao negar a pluralidade da criação, afirma-se, a partir da própria criação, um critério único de análise para a complexidade do mundo. Quando alguns evangélicos apoiaram o “candidato da igreja”, anatematizando irmãos, também afirmaram que ser cristão é crer em Jesus e seguir algum plano de governo específico. Desta forma, de maneira inconsciente ou não, alteraram o Evangelho, pois se a política é “obra de nossas mãos”, confiar excessivamente nela se torna idolatria (Salmos 115:4–8)
- Esta conflação do Evangelho a um programa político específico também contribui para uma visão maniqueísta da política (e até do mundo) em que, em suma, “direita” e “esquerda” ganhariam essências atemporais e disputariam um poder total sobre o mundo, o que fere o princípio da soberania de Cristo sobre todas as coisas (Salmos 24:1; Colossenses 1:15), absolutizando o poder e a esfera de influência da política sobre todas as instâncias da vida, gerando uma hiperpolitização.
- Esqueceram, também, que a redenção de Cristo veio reconciliar todas as coisas, por meio da paz conseguida na cruz (Colossenses 1:20), e de que a convivência entre diferentes perspectivas é possível, desde que o fundamento, que é o Cristo crucificado, não seja removido (1 Coríntios 3:1–11). A igreja, enquanto instituição, deve promover esta reconciliação por meio da pregação e vivência do Evangelho. Enquanto Corpo de Cristo, os cristãos devem, a partir do Evangelho, levar a paz de Cristo ao seu cotidiano, lutando contra os efeitos do pecado em toda a Criação.
- O comportamento belicoso e verborrágico de evangélicos nos púlpitos e nas redes sociais, no apoio irrestrito a um plano de governo específico, depõe contra a mansidão e misericórdia cristãs (Mateus 5:1–12; Romanos 12:21; Gálatas 5:22).
- A igreja não deve se render a ideologias ou partidos, pois deve denunciar os ídolos contemporâneos a partir da Palavra de Deus (2 Crônicas 18:12,13), usando de misericórdia e amor, tendo viver honesto e amando a fraternidade, fugindo do mau testemunho (1 Pedro 2:12,17; 4:14–16), para que se revele o Cristo, nossa paz, que “na sua carne, desfez as inimizades”, e fez “de todos um só povo, derrubando o muro de separação” que, por vezes, é construído em disputas políticas (Efésios 2:13–16).