“Historiadora não é teóloga!”

O problema da crítica à Beth Alisson Barr

Leonardo Cruz
5 min readAug 19, 2022
Emily McPherson College Library, Russell St., c. 1960. (Museums Victoria)

Uma crítica que se tornou recorrente ao livro A construção da feminilidade bíblica, de Beth Alisson Barr, é que ela comenta sobre um assunto que está além de suas competências. Masculinidade e feminilidade bíblicas são assunto da Teologia, portanto, deveriam ser analisados apenas pela exegese. Beth, como historiadora, não seria então capacitada para fazer exegese e dar uma opinião teológica.

Essa crítica tem problemas justamente no que ela afirma ser seu ponto forte: a visão de exegese. Quem assim pensa parece não perceber que a tarefa de interpretar a Bíblia é auxiliada pelo conhecimento de diversos campos de pesquisa, ou seja, apenas saber regras gramaticais não faz uma exegese. Você precisa de conhecimentos prévios para entender um texto. No caso da História, existem pelo menos três formas em que ela contribui para a exegese, e veremos como Beth lida com cada uma delas.

História e exegese

A primeira forma de a História contribuir para a exegese é com a interpretação do texto em si. Ninguém nasce sabendo falar hebraico antigo ou grego koiné, ou entendendo o contexto histórico do Antigo e Novo Testamentos. A recuperação e sistematização do conhecimento de idiomas do texto bíblico original e do mundo em que eles foram escritos dependem, em boa medida, da própria História e de campos de pesquisa que dialogam com ela, como a Arqueologia, Antropologia e Linguística. De novo: apenas saber regras gramaticais não faz uma exegese. Precisamos do máximo de entendimento possível da situação de quem primeiro recebeu os textos da Escritura para evitarmos impor preconceitos de nosso contexto ao texto.

Nesse caso, essa não é a especialidade de Beth. Ela claramente faz referência a pesquisadores que, para ela, possuem argumentos convincentes sobre a situação das mulheres no texto bíblico: Beverly Gaventa, Lucy Peppiatt, Cynthia Long-Westfall, Craig Keener, entre outros. Uma vez que Beth reconhece que depende do que essas pessoas construíram, uma avaliação correta seria comparar como Beth apresenta o trabalho desses teólogos e teólogas com o que cada um deles escreveu — ao invés de rejeitar o que Beth diz por atacado.

Outra forma em que a História pode ajudar na exegese é entendendo como os textos bíblicos foram recebidos ao longo do tempo. Beth dedica parte do livro para avaliar como a Bíblia era lida na Idade Média, e compara essa leitura com o que o Conselho de Masculinidade e Feminilidade Bíblica (CBMW) afirma ser a leitura histórica e ortodoxa da igreja. Ao fazer isso, Beth mostra que a leitura do CBMW não é antiga, porque teólogos medievais usavam textos bíblicos diferentes dos que teólogos hoje usam para basear a feminilidade bíblica; e também é no mínimo heterodoxa (por causa da visão sobre Trindade).

A questão aqui não é simplesmente dizer que num ano X as pessoas liam a Bíblia de um jeito, e no ano Y de outro — este é o primeiro passo da análise histórica. O objetivo é mostrar por que e como faziam isso. Aqui, já conseguimos ver no livro Beth trabalhando a partir de sua pesquisa como historiadora. Ela mostra como o “padrão ideológico de santidade” na Idade Média exigia a mesma coisa de homens e mulheres: quem vivesse uma vida de celibato e dedicação total à Igreja viveria o ápice da santidade. Essa visão abriu um espaço para mulheres que, a partir da institucionalização da Reforma, foi se perdendo. Isso nos ajuda a perceber que nosso contexto tem mais influência na nossa interpretação bíblica do que gostaríamos de admitir, mesmo quando algo foi dito por “grandes teólogos”.

Ainda, a História pode nos ajudar a perceber como e por que foram construídas as ferramentas que usamos para intepretar a Bíblia. Masculinidade e feminilidade não são palavras originais do texto bíblico: elas são conceitos, meios de conferir sentido a um punhado de textos bíblicos que acredita-se serem importantes para entender o que Deus espera de homens e mulheres. Mas quando esses textos passaram a ser lidos pela ótica de masculinidade-e-feminilidade? Quem definiu esses conceitos e os considerou como normativos para todo o cristianismo?

Nesse caso, Beth convincentemente demonstra que os conceitos Masculinidade e Feminilidade só fazem sentido num contexto moderno, em que ideias do cristianismo fundamentalista e evangelical dos Estados Unidos do séc. 20 são usadas para combater o que se percebia de perigoso no movimento feminista. Isto não significa que a discussão sobre o que a Bíblia exige de homem e mulher está encerrada, significa apenas que tomar definições modernas do CBMW como normativas para avaliar toda a história do cristianismo é anacrônico, pois impõe uma perspectiva contemporânea como natural ao passado cristão — e talvez até para a própria Bíblia.

Beth certamente constrói seu argumento de forma a mostrar que o complementarismo é errado. Porém, mesmo que complementaristas discordem de suas conclusões, a argumentação histórica de Beth é convincente, ficando o convite a complementaristas para superar as lacunas de definições que permanecem desde a formação do CBMW — e elaborando uma teologia mais refinada com uma exegese bem informada pelo auxílio de outros campos de pesquisa.

Por fim, deixo o exemplo de Kenneth J. Stewart, um complementarista que fez isso muito antes do livro da Beth. Ao falar sobre o ministério feminino na história da Teologia Reformada no livro Dez Mitos sobre o Calvinismo, Stewart argumenta:

Será que não existem lições a serem aprendidas das missões mundiais que devam melhorar nossas ideias sobre a prática do ministério em nossas igrejas hoje? A utilidade das mulheres no início da história da Teologia Reformada e as mudanças observáveis ​​nos papéis de gênero ao longo do século 20 não exigiriam qualquer repensamento por parte das igrejas na atualidade? […]

Existe um considerável chão comum, disponível para ser compartilhado entre as igrejas reformadas que abriram e aquelas que não abriram seus ministérios oficiais para ambos os sexos. Todos podem observar que o Novo Testamento mostra maneiras de incluir as mulheres em algumas formas de ministério reconhecido sob as rubricas de colaborador (Evódia e Síntique em Fp 4:3), e de diácono ou servo (Febe em Rm 16:1). Todos podem verificar que a igreja primitiva logo instituiu uma ordem de ministério chamada mulher da Bíblia e irmã da igreja. Na época da Reforma e a partir de então, é matéria documentada que as Igrejas Reformadas também decidiram ampliar o número de ofícios reconhecidos na igreja à luz de circunstâncias emergentes urgentes. Hoje, como antes, podemos apontar prontamente pessoas que podemos honrar como mães da igreja. Que escrúpulos ainda restam que impedem o reconhecimento do princípio de que a obra do evangelho garante a colaboração de um tipo reconhecido? (p. 196–197)

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Leonardo Cruz

Cristão, Presbiteriano, mestrando em História - UFF; voluntário na Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²).