Luz, câmera, ação: quando o culto virou performance
O culto cristão na pós-modernidade: parte 2 — adoração extravagante
Na primeira parte desta série, vimos como os carismáticos independentes, um dos movimentos recentes dentro do cristianismo — e o que mais cresce na atualidade — tem sido um dos maiores difusores da cultura pós-moderna a nível global. A pergunta a ser respondida agora é: como essa relação de fusão entre igreja e pós-modernidade começou?
O que é a pós-modernidade, afinal?
Quando se fala em pós-modernidade, especialmente entre evangélicos no Brasil, normalmente se percebe o termo como referente a um conjunto de ideias específicas (para usar a linguagem da moda, uma cosmovisão) cujo objetivo é atacar as bases da fé cristã por meio de um secularismo escancarado: negando a veracidade da Bíblia, a divindade de Cristo, a existência de Deus, e por aí vai. Ainda existe uma outra parcela — esta consideravelmente menor — que também acredita na pós-modernidade como um conjunto de idéias específicas, mas que em nome do amor, da diversidade e da tolerância, pode salvar o evangelicalismo de suas hipocrisias e crises internas.
Contudo, pensar na pós-modernidade como uma cosmovisão acarreta dois problemas. O primeiro é perder de vista que a própria origem do termo está relacionada não exatamente a uma cosmovisão específica que surgiu em uma determinada época da História, mas que se trata de uma época da História em si. A inspiração vem da divisão feita pela História Tradicional (e bem ocidental, por sinal), que entende a História da humanidade como um desdobrar que se inicia na Pré-História, passando pela História Antiga, Medieval, Moderna, e, enfim, se chega na era Pós-Moderna. Neste sentido, a pós-modernidade é vivida por todos. Sejamos cristãos ou “seculares”, somos todos pós-modernos. O segundo problema é que, se a pós-modernidade é uma época da História, dizer que o pós-moderno (ou o pós-modernismo) é uma cosmovisão bem estruturada e distinta é ignorar que, na verdade, a pós-modernidade é um guarda-chuva que abriga uma variedade de cosmovisões (sejam elas boas ou más), justamente por terem surgido neste período histórico que chamamos de pós-modernidade.
Diante disto, é fácil entender porque definir o que é a pós-modernidade é uma tarefa árdua. No entanto, apresentarei o que resultou de um diálogo entre as obras consultadas para esta pesquisa¹, numa tentativa de reunir o que há de comum entre tantas interpretações.
- A pós-modernidade é marcada por uma série de negações de características fundamentais do mundo moderno. Se o moderno era racional, o pós-moderno agora é subjetivo, se as verdades eram universais, agora são relativas a cada contexto cultural, se o mundo girava em torno do que era logicamente útil, agora o mundo é movido pelo prazer pessoal, se antes vivíamos sob o controle da soberania da Nação, hoje somos multiculturalistas e globalizados.
- Parte dessas negações da modernidade são baseadas em um apego excessivo a elementos que surgiram na época Moderna, e em alguns casos, se tornando até uma evolução de determinadas características modernas. Algumas delas são, por exemplo, o uso massivo da tecnologia, a primazia da liberdade individual (e em virtude disto, o fortalecimento da ideia de auto-expressão —isto é, a manifestação pública de sentimentos individuais — como um direito), e a utilidade como base das nossas ações (agora, com ênfase no que é útil para a realização sentimental do indivíduo).
- Existem duas maneiras pelas quais essas características se tornaram o espírito de nosso tempo. Uma delas é pelo Mercado. Se na Idade Média o Mercado era uma esfera em conflito com a Igreja e os Reinos pela primazia social, na pós-modernidade do capitalismo global o Mercado é o espaço onde até a Igreja e o Estado buscam sua legitimação. O Mercado não é mais apenas o espaço da venda dos excedentes, mas também o espaço das relações sociais e de definição de práticas culturais: por exemplo, a expansão global do capitalismo foi um dos fatores cruciais para o enfraquecimento dos diversos nacionalismos, e diferenças culturais nos grandes centros ao redor do globo (encabeçam a lista cidades como Londres, Nova Iorque e Paris) são cada vez mais minimizadas. Ou, ainda, pense nas implicações da vida comum: a visão de que o casamento “é apenas um contrato”, por exemplo.
- A segunda maneira é pelo crescimento e independência da Mídia. A humanidade sempre se beneficiou das mídias (um livro, por exemplo, é uma mídia porque é um meio pelo qual uma mensagem é transmitida em um determinado formato). No entanto, até o século 19, a Mídia era usada a serviço de outras instituições sociais — basta lembrar que a Bíblia (um livro) é usada para instruir os fiéis na Palavra de Deus para o serviço da Igreja, ou ainda, lembrar da existência de jornais partidários: comunistas, anarquistas e liberais tinham a possibilidade de publicar diferentes interpretações dos mesmos tópicos, para divulgação e defesa do partido. A partir do século 20, surge um sentimento de que a Mídia deveria ser “mais neutra”, levando a uma certa independência da Mídia em relação às outras instituições sociais. Hoje, com a popularização de mídias como os smartphones e a possibilidade de controle pessoal de conteúdo e formato, vivemos uma época em que a Mídia não é apenas uma instituição social, mas também um espaço, e suas próprias regras se tornaram as regras do mundo: basta não ter uma conta em redes sociais e você será considerado um estranho, alienado; tente vender algo que não está nos trending topics e prepare-se para falência. A partilha de conteúdo comum por meios e formatos em comum teve o mesmo efeito do Mercado globalizado — a possibilidade de um apelo direto a indivíduos, sem a intervenção de suas comunidades (que usam outros meios e formatos), foi um grande passo para que hoje fôssemos pós-modernos.
Vale lembrar que esse conjunto de características não apareceu de repente. Afinal, ninguém se sentiu pós-moderno da noite para o dia. Embora cada um desses fatores que mencionamos tenham surgido em momentos distintos da História, um evento em especial é recorrentemente citado como marcante nesta transição para a pós-modernidade: a Queda do Muro de Berlim, iniciada em 1989.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, os Estados Unidos e a União Soviética (URSS) viveram uma relação de tensão política que, em 1947, a partir de uma decisão do governo americano de conter oficialmente a expansão da URSS (fosse em territórios ou influência) desencadeou, no mundo todo, uma série de conflitos indiretos entre os dois países — o período chamado de Guerra Fria.
Para além de um conflito entre dois países (ou melhor, superpotências), a Guerra Fria ainda representava a sobrevivência do mundo moderno na mentalidade do Ocidente. Se a verdade pode ser encontrada pela razão humana e tem abrangência universal, o que se via era uma disputa por quem teria descoberto esta verdade. Capitalismo e Comunismo rivalizavam a nível mundial para alcançar o prêmio da verdade universal.
O Muro de Berlim tinha sido construído pelo lado comunista dessa disputa. Vê-lo ser derrubado oficialmente trouxe a muitos o sentimento de que o Capitalismo estava próximo de vencer a Guerra Fria. Não apenas isso, mas quando a União Soviética se dissolveu em 1991, havia gente anunciando que a História teria chegado ao fim — a sucessão de dias e noites continuaria acontecendo, mas a História (como um conflito de ideais) seria apenas lembrança, uma vez que nosso cotidiano estaria fadado a seguir os moldes do Capitalismo².
Entretanto, o Capitalismo não saiu ileso do fim da Guerra Fria. A exploração do meio ambiente e de países periféricos, os malefícios dos padrões de consumo em massa, a desigualdade social e a exclusão de minorias dos benefícios do Mercado foram críticas que vieram tanto daqueles que tentavam juntar os cacos do Marxismo após o fim da União Soviética como também dos que, de dentro do Liberalismo, propunham um capitalismo mais suave e democrático. Pessoas de diferentes culturas tinham diferentes perspectivas sobre sua participação no Mercado, e todas são igualmente válidas, uma vez que se crê que a verdade é relativa a cada contexto cultural. Estas críticas não ficaram restritas aos intelectuais e ao meio acadêmico: filmes como Beleza Americana, Clube da Luta e Matrix (todos de 1999) são exemplos de como as críticas ao Capitalismo do século 20 foram apresentadas ao grande público, e a virada do milênio foi o momento em que tentativas de reforma no Capitalismo foram tomadas com mais esforço. O Protocolo de Kyoto (1997) e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (2000), da ONU, foram medidas que surgiram com pretensão de ser um padrão internacional. Quanto ao Mercado e ao consumidor, a proposta de um consumo cada vez mais personalizado e acessível se tornou o parâmetro global de eficiência nos negócios.
O consumo personalizado (e sua constante intensificação) foi a resposta do Mercado à ideia de que a verdade é relativa a cada contexto cultural — não faz muito sentido vender na Índia um Ford fabricado para o consumidor americano. E foi assim também que, para o mundo todo, foi transmitida a ideia de que a existência de padrões é um problema em si mesmo.
Como a igreja foi afetada?
No que tange ao cristãos como um todo, podemos resumir dizendo que o cristianismo em si sofreu críticas severas quanto a sua validade como uma fé universal com parâmetros morais que se aplicam a todas as culturas, que se baseia em um livro que além de possibilitar interpretações diversas, apresentaria algumas ideias bastante retrógradas.
Os evangélicos reagiram de forma diversa a essas críticas. Alguns grupos, concordando que o evangelicalismo precisava de uma revisão geral, desenvolveram conceitos do Liberalismo Teológico e da sociologia contemporânea, e a partir de uma relativização de afirmações do cristianismo tradicional — como a existência de Deus, a divindade de Jesus, a Bíblia como regra de fé e a validade universal do Evangelho — passaram a dizer que a real mensagem da Bíblia era a mesma de outras tantas religiões: amor e tolerância. A variedade de movimentos é tamanha que, para resumir, muitos usam a ideia de Teologias Pós-Modernas³.
Outros tentaram tornar a mensagem mais atrativa. O problema era a forma, que estava ultrapassada. Assim, foi iniciado um movimento em busca de “igrejas” que não pareciam igrejas, ou melhor, eram comunidades. O templo era um auditório, o coral e o órgão deram lugar a uma banda pop num palco com telões, o pastor não usava paletó ou vestes litúrgicas, mas parecia um apresentador de TV, e o sermão se assemelhava àquela palestra motivacional da empresa. Estas são as Igrejas “Sensíveis-ao-que-Busca” [Seeker-Sensitive Churches], assim chamadas porque tentaram fazer a igreja mais agradável para que aquele que não é cristão possa chegar e sentir-se confortável; partiam da ideia de mudar a forma e manter o conteúdo. Contudo, este modelo foi acusado de pegar leve em temas que seriam essenciais ao cristianismo, como a realidade do pecado e a necessidade de arrependimento, ou a vida comunitária da igreja e o serviço ao próximo em humildade e desinteresse. Se assim fizessem, a chance de perder público era enorme⁴.
Uma outra parcela afirmou que o problema estava na negação das origens do cristianismo. Para vencer as críticas da pós-modernidade, o que deveria ser feito era retornar enfaticamente a verdadeira raiz da fé cristã: a cultura judaica. Uma vez que Jesus e os discípulos eram judeus, os crentes deveriam restaurar na sua teologia e no seu culto padrões presentes no judaísmo. No entanto, a proposta do Judaísmo Messiânico não alcançou a amplitude que esperava, e alguns setores do movimento passaram a negar doutrinas centrais para quem se define como cristão, como a Trindade, e, inclusive, passaram a adotar a circuncisão como ritual de adesão, em lugar do batismo⁵.
Estas são apenas algumas das tentativas de resposta evangélica aos problemas levantados pela pós-modernidade. Contudo, nenhuma delas teve a abrangência da Adoração Extravagante, que se tornou um fenômeno global. Mas, primeiro, é preciso fazer uma parada na Austrália.
A Mamãe-Canguru
“Quando historiadores da igreja pararem para refletir sobre a revolução da adoração que aconteceu na virada para o século 21, Darlene Zschech será reconhecida por seu papel fundamental.” (Bill Hybels)⁶
Darlene Zschech fazia parte do cenário das celebridades australianas desde a infância, quando participava do programa infantil Happy Go Round. Depois de crises de bulimia, que começaram após o divórcio dos pais, Darlene e o pai retornaram à igreja nos anos 1980, e lá ela conheceu seu marido, Mark Zschech. Eles se mudaram para Sydney assim que casaram, e passaram a frequentar a Hills Christ Life Center, que se tornaria o que hoje é a Hillsong Church. Até então, Darlene trabalhava compondo e cantando jingles para grandes empresas do fast-food, como McDonald’s, KFC e Coca-Cola. Começou a colaborar para a Hillsong em 1988 com o vinil Spirit and Truth, e quando compôs a clássica Shout to Lord, em 1993, finalmente passou a fazer parte da equipe de louvor da igreja australiana⁷.
Darlene foi ordenada pastora da Hillsong Church em 1996, quando passou a liderar a equipe de louvor, e publicou seu livro Adoração, resultado de muitas reflexões e experiências com Deus durante a jornada até a liderança do louvor na Hillsong. Contudo, ela ainda sentia um certo incômodo ao cantar nos cultos de domingo. Para Darlene, parecia que a adoração não estava “tocando o coração de Deus”.
Depois de muito tempo de oração e busca, Darlene diz que Deus mostrou a existência de barreiras à adoração da igreja, especialmente a religiosidade extrema. Deus, então, lhe deu uma visão sobre um novo modelo de adoração. Em 2001, Darlene publicou o seu primeiro best-seller, o livro Extravagant Worship [Adoração Extravagante]. O novo conceito também esteve presente em dois álbuns homônimos lançados pela Hillsong em 2002 (um com Darlene liderando a equipe de louvor, outro com Reuben Morgan). Deus teria direcionado Darlene para o texto de Lucas 7:36–50, quando Jesus tem seus pés ungidos por uma mulher pecadora. Darlene então, conclui sobre o texto:
A causa de Cristo pulsando em nossas veias deveria levar a uma extraordinária adoração ao Pai. Meu desejo é adorar a Jesus assim como a mulher com o vaso de alabastro fez! Excessiva, abundante, dispendiosa, demasiado exuberante, suntuosa, inestimável, preciosa […] A demonstração intencional de amor daquela mulher para com seu Senhor é um exemplo poderoso de uma adoração verdadeira, com sinceridade de coração. Sua expressão de adoração nada tinha a ver com uma música ou uma canção, mas tinha tudo a ver em ser extravagante na devoção a seu Salvador⁸.
Segundo Darlene, essa mulher teria dado o exemplo do que é adoração: uma expressão de gratidão do fiel a Deus que é exagerada, e mesmo que aos olhos de outros possa parecer algo tolo e desnecessário (Lucas 7:39), é uma adoração que busca estar, em certo nível, equivalente ao sacrifício de Jesus por nós — se o próprio Deus não mediu custos para nos salvar, nós não temos de nos preocupar com restrições na adoração, temos de entregar tudo de nós! Assim, Darlene sugere que todo cristão deveria se perguntar: “Será que tenho uma adoração superabundante? Será que eu ultrapasso as barreiras racionais quando eu adoro a Deus? Ou eu simplesmente faço o que me pedem, apenas para cumprir um nível básico de compromisso?”⁹. No livro de Darlene, podemos ver que existem, pelo menos, três motivos pelos quais nossa adoração deve ser extravagante:
- Devemos expressar nossa gratidão a Deus pelo seu sacrifício por nós na cruz. Assim como este sacrifício foi “superabundante” (Romanos 5:20), nossa adoração deve seguir este parâmetro. Devemos ser intensos, superar todos os limites, vencer as nossas barreiras racionais para louvar a Deus pelo o que Ele fez por nós e pelo que Ele é, e isso nos dá uma alegria que não deve coexistir com lamentação e luta! Esse novo paradigma da adoração extravagante nos curaria da religiosidade que nos impede de adorar a Deus da maneira devida: com sinceridade e autenticidade, dando o melhor de nós¹⁰.
- Deus é misericordioso e está disposto a abençoar seu povo. Mas, para que isso aconteça, devemos “tocar o coração de Deus” com nossa adoração. A música é mais do que instrumento de ensino ou a “prévia do sermão”: ela faz parte de um movimento de adoração que toca os céus e leva nossa expressão de louvor a Ele, logo, Deus abençoa seu povo, porque a adoração Lhe é irresistível. Assim, se quisermos viver uma vida sobrenatural e tocar o coração de Deus para que Ele derrame suas bênçãos sobre nós, devemos viver por meios sobrenaturais — e a adoração extravagante, por meio da música, tem esse papel de conectar e alinhar o coração do adorador com Deus. Em Gênesis 8:20–22, vemos como o sacrifício de Noé após o Dilúvio foi tão extravagante que moveu o coração de Deus, para que Ele nunca mais destruísse a Terra com água. Davi, sabendo que a adoração tem esse poder, disse que não oferecia sacrifício que não lhe fosse custoso (1 Crônicas 21:24)¹¹.
- Quando o povo de Deus se junta para adorá-lo, o louvor tem um movimento duplo: ele alegra os céus, e abala o inferno. Quando a adoração é extravagante, esse movimento ganha intensidade, porque a adoração toca o coração de Deus e Ele começa a lutar contra nossos inimigos humanos e espirituais (Atos 16:23–35). Deus nos deu poder para declarar profeticamente sobre a realidade no momento de adoração, e nós devemos usar essa arma: exercitar o poder da declaração é um ato de fé “que muda a atmosfera das nossas vidas”. Isso só acontece se estivermos constantemente “encharcados” [soaked] da presença de Deus, por meio da música, onde expressamos nosso amor a Deus¹². Se os evangélicos não escutavam “música do mundo” por seu zelo à santidade, agora tinham outra razão para isso: o louvor constante em nossa vida faz com que Deus lute nossas batalhas dia após dia.
A revolução da adoração
Se, assim como eu, você frequentou uma igreja evangélica nas décadas de 1990 e 2000, você viu o poder revolucionário deste novo conceito em ação. Eu cresci na Assembleia de Deus, e o culto assembleano é marcado pela participação dos conjuntos (crianças, mocidade, senhoras, e, às vezes, os varões), e, logo após, viria a pregação. Neste novo contexto, as igrejas viam novos ministérios buscando espaço no culto público: os ministérios de louvor, dança e teatro. Cada vez mais pessoas se apropriavam da ideia de que, uma vez que tudo que há em nós deve louvar ao Senhor (Salmos 103:1), obviamente, o culto precisaria ser revisto, pois todas as manifestações individuais de adoração seriam igualmente válidas para o culto¹³. O impacto foi tão forte que a Igreja Presbiteriana do Brasil precisou debater a questão em Supremo Concílio visto o abandono do Princípio Regulador do Culto em algumas igrejas, e alguns grupos católicos (especialmente os carismáticos) passaram a adotar os novos “ministérios”.
Mais do que apenas reorganizar o culto, a adoração extravagante apresentou um novo modelo de cristianismo evangélico. Ela pareceu fazer com que o modelo das Igrejas Seeker-Sensitive falasse de pecado, arrependimento, e vida em santidade, sem as relativizações progressistas ou o radicalismo nostálgico judeu-messiânico. Entretanto, para isso não foram usados os temas clássicos da teologia protestante — a salvação somente pela Graça, a justificação pela Fé, a obra substitutiva de Cristo, a imputação de Seus méritos sobre o pecador e a união ao Corpo de Cristo, a Igreja. Teologia e outras formulações conceituais são coisas da religiosidade. Deus está apenas preocupado com seu coração, e em como você demonstra amor por Ele e pelo próximo. Esta noção de individualidade é tão basilar que Darlene afirma: apesar da importância da adoração congregacional, nossos momentos mais gloriosos de adoração são quando estamos sozinhos diante de Deus. Essa ideia, inclusive, motivou Darlene a escrever canções estruturadas na primeira pessoa do singular, com o objetivo de um culto público mais “intimista”¹⁴. Se você já ouviu algo como “esqueça o irmão que está ao seu lado, concentre-se na sua adoração!”, sabe do que estamos falando.
A tentativa de seguir o espírito das Igrejas Seeker-Sensitive (mudar a forma e manter o conteúdo) com o tempero da adoração extravagante pode ter dado um tom mais familiar na mensagem aos evangélicos em geral. Mas o que movimento iniciado por Darlene não percebeu é que mudar a forma sem alterar o conteúdo é uma impossibilidade. E ao adotar um modelo estrutural em que a forma procura o conforto daquele que não crê no Evangelho para poder atraí-lo, a adoração extravagante acabou por adaptar demandas “do mundo”, ou seja, da pós-modernidade, ao evangeliquês. Essa adaptação provocou o surgimento de novas mensagens e práticas, desta vez de uma vida espiritual cada vez mais individualizada, subjetiva e sentimentalista. Se a Igreja Seeker-Sensitive foi o movimento que colocou a Mídia no culto com palcos, bandas, câmeras e telões, a adoração passou a ser julgada pelo critério da Mídia: quanto mais performance e autenticidade (ou seja, extravagância), melhor¹⁵. A necessidade de “mais extravagância” é anunciada por Darlene quando ela afirma que:
Ao longo de todas as histórias da Bíblia, sempre que alguém apresentou uma adoração extravagante, Deus reagiu com bênçãos extravagantes. É uma relação de causa e efeito. Adoração Extravagante traz resultados extravagantes. E o que faz uma adoração extravagante? Ela deve custar algo. […]
Adorar negligentemente é como ter uma granada em mãos e não tirar o pino, é como guardar uma tela do Leonardo da Vinci no armário¹⁶.
Em tese, não existe problema em querer aprofundar a comunhão com Deus. A Bíblia mesmo diz para que “prossigamos em conhecer ao Senhor” (Oséias 6:3). O problema reside em camadas mais profundas: para Darlene, o critério que define o conhecimento que temos de Deus depende da nossa capacidade de auto-expressão. “Adorar negligentemente” significa não romper barreiras racionais, emocionais e culturais no culto, e isto nos mantém alienados de Deus, mas, quanto mais intensos formos, mais Deus nos dará.
O significado de intensidade passa despercebido porque crescemos numa cultura em que a compulsão é desejada. Por exemplo, quando abrem (todos) os cultos com frases como “hoje vai ser o melhor dia da sua vida”, não existe espaço para a reflexão, meditação, ou lamento — dar 100% de suas energias no culto se tornou o padrão de domingo a domingo. Portanto, o nosso desejo não tem um direcionamento, tornou-se um fim em si mesmo, e é por isso que somos insaciáveis (e não cansamos de fazer músicas sobre isso). A questão é que a compulsão que era satisfeita no Mercado encontra seu reflexo na igreja e na cultura evangélica. Assim, a geração que tinha por desejo consumir o melhor pacote de internet, o melhor combo da TV a cabo e a melhor promoção do McDonald’s agora esperava que Deus respondesse da mesma maneira ao seu esforço no culto. Ao dizer que Deus está inclinado a deliberadamente abençoar o povo quanto mais extravagante a adoração for, o culto passou a espelhar a mecânica do shopping: vá, pague, pegue o máximo que puder, volte para casa e aguarde a próxima promoção. A adoração extravagante transformou o culto numa espécie de Black Friday espiritual¹⁷.
As críticas teológicas ao novo modelo certamente vieram. No Brasil, a mais antiga foi a do assembleano Gutierres Fernandes Siqueira em 2008, no seu blog Teologia Pentecostal. Outro assembleano, o pastor Ciro Sanches Zibordi, escreveu em 2014 Erros que os Adoradores Devem Evitar, e fez menção à adoração extravagante¹⁸. Em inglês, a crítica mais antiga (e contundente) está em Fogo Estranho, livro publicado por John MacArthur em 2013. As críticas vieram tardiamente, quando a adoração extravagante (e os grandes ministérios que a patrocinavam) já haviam se tornado globais. Nomes como Hillsong Worship, Gateway Worship e Jesus Culture eram conhecidos mundo afora, e no Brasil o movimento se popularizou com a “Geração Apaixonada” que cantou o famoso hit do álbum Som de Adoradores da Aline Barros, que conseguiu traduzir o fenômeno Hillsong para português no mainstream. Festivais e shows gospel com artistas do calibre de Fernandinho, Nívea Soares, David Quinlan, Antônio Cirilo e Diante do Trono solidificaram a versão brasileira do movimento.
O atraso das críticas não impediu que elas surtissem efeito. A saída de Darlene da Hillsong Church em 2011 e uma nova onda da teologia reformada (impulsionada por conferências como a Strange Fire Conference, The Gospel Coalition e, no Brasil, a Conferência FIEL) amplificaram as críticas à adoração extravagante, e conseguiram, de certo modo, fazer com que o movimento saísse de moda. Mesmo entre os cantores gospel, o movimento aparenta ser mais uma lembrança do que uma força produtiva.
A adoração extravagante conseguiu naturalizar nos evangélicos um emaranhado de práticas e conceitos (como a ideia de “ministrar o louvor”), mas o movimento perdeu seu encantamento. As críticas ao novo paradigma de culto colocaram uma pergunta que os adoradores extravagantes não conseguiram responder: como saber se a “extravagância” tem origem no mero sentimento humano ou na obra do Espírito Santo?
É na intenção de responder essa pergunta que nasce a adoração espontânea.
Notas
1^ Todas as características mencionadas como fundamentais para definir a pós-modernidade foram encontradas em: Charles Taylor: The Ethics of Authenticity. Harvard University Press, 1991 [tradução em português: A Ética da Autenticidade. É Realizações, 2011]; Gene Edward Veith, Jr.: Postmodern Times — A Christian Guide to Contemporary Thought and Culture. Crossway Books, 1994; Hans R. Rookmaaker: A Arte Moderna e a Morte de uma Cultura. Ultimato, 2015; Herman Dooyeweerd: No Crepúsculo do Pensamento Ocidental — Estudo Sobre a Pretensa Autonomia do Pensamento Teórico. Hagnos, 2010; James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy — Mapping a Post-secular Theology. Baker Academic, 2005; e Who’s Afraid of Postmodernism? — Taking Derrida, Lyotard and Foucault to Church. Baker Academic, 2006; Stig Hjarvard: The Mediatization of Culture and Society. Routledge, 2013; Zygmunt Bauman: Liquid Modernity. Polity Press, 2000 [tradução em português: Modernidade Líquida. Zahar, 2001].
2^ Essa ideia aparece em, por exemplo, Francis Fukuyama: O Fim da História e o Último Homem. Rocco, 1992. Este parágrafo é a adaptação de um trecho de David T. Koyzis: Visões e Ilusões Políticas — Uma Análise e Crítica Cristã das Ideologias Contemporâneas. Vida Nova, 2014.
3^ Cf. Kevin J. Vanhoozer (org.): The Cambridge Companion to Postmodern Theology. Cambridge University Press, 2003.
4^ Cf. Dorothy Greco: How the Seeker-Sensitive, Consumer Church Is Failing a Generation. Christianity Today, Agosto — 2013; Paul Carter: Why I Abandoned Seeker Church. The Gospel Coalition, Agosto — 2018.
5^ Cf. BTCast 254: Judeus Messiânicos. Julho — 2018.
6^ Darlene Zschech: Extravagant Worship. Bethany House, 2001; em Endorsements. A tradução do livro para o português, feita pela editora Atos em 2003, está esgotada.
7^ Today’s Christian Woman: The Power of Praising God. Março — 2001.
8^ Darlene Zschech: Extravagant Worship. Bethany House, 2003; p. 25.
9^ Darlene Zschech: Extravagant Worship. p. 26.
10^ Cf. Ministério Vivos: Adoração Extravagante; James W. Goll: The Controversy Over Extravagant Worship. Charisma Magazine, Outubro /2013; Delesslyn A. Kennebrew: What is True Worship?. Chrstianity Today, Novembro/2012; Valdir Ávila: Adoração Extravagante. Guia-me, Setembro/2010.
11^ Darlene Zschech: Extravagant Worship. p. 27–34.
12^ Darlene Zschech: Extravagant Worship. p. 43-44, 53–56, 60–63. Para Darlene, a adoração envolve muito mais que música, “adoração é um estilo de vida”. Contudo, a música, por ser um movimento que se origina do crente, tem esse poder de conectar o coração do adorador com o coração de Deus.
13^ Zygmunt Bauman: Liquid Modernity. Polity Press, 2000, p. 64–72. Bauman comenta sobre o as “múltiplas autoridades” da sociedade pós-modernas: ao invés de existir um padrão definido por uma autoridade central, no qual os indivíduos devem se adaptar, a existência de diversas manifestações descentralizadas é possível.
14^ Darlene Zschech: Extravagant Worship. p. 29. Darlene não foi a primeira pessoa a procurar trazer a lógica do culto para a experiência individualizada, fosse em espaço privado ou no culto. Esse movimento pode ser percebido desde, pelo menos, 1850 (com suas diferentes ênfases). Para mais detalhes, veja Mark Noll: The Intellectual Disaster of Fundamentalism, em The Scandal of the Evangelical Mind. Eerdmans, 1994; uma abordagem mais profunda pode ser encontrada em Edith L. Blumhofer e Mark Noll (org.): Sing Them Over Again to Me: Hymns and Hymnbooks in America. University Alabama Press, 2006.
15^ Stig Hjarvard: The Mediatization of Culture and Society. Routledge, 2013. p. 79–80, 86. Veja também Zygmunt Bauman: Liquid Modernity. Polity Press, 2000, p. 64–76.
16^ Darlene Zschech: Extravagant Worship. p. 35,60.
17^ Zygmunt Bauman: Liquid Modernity. Polity Press, 2000, p. 72–80. Bauman argumenta que a “compulsão pela compulsão” se tornou um padrão para as práticas sociais em diversas esferas para além do Mercado.
18^ Preciso notificar que essas foram as críticas mais antigas à adoração extravagante (com menção explícita ao conceito) que encontrei no período em que me propus a pesquisar o assunto. É possível que hajam outras mais antigas.