Uma defesa cristã da democracia

Reinhold Niebuhr e a importância da humildade religiosa

Leonardo Cruz
15 min readSep 6, 2021
Congresso Nacional em Brasília (Foto: Flickr)

Sobre Niebuhr

Karl Paul Reinhold Niebuhr (1892–1971) era filho de dois imigrantes alemães, Gustav e Lydia Niebuhr, que chegaram nos Estados Unidos quando ainda eram crianças. Gustav era ligado ao Sínodo Evangélico da América do Norte, que buscava conciliar as tradições luterana e reformada, iniciativa que acabou criando a Igreja Evangélica e Reformada em 1934.¹ Desde cedo, Reinhold desejou seguir os passos do pai no ministério pastoral, tendo iniciado a preparação aos 15 anos. Gustav Niebuhr faleceu repentinamente em 1912, e seu filho Reinhold, aos 20 anos de idade, substitui-o no pastoreio da igreja que sua família congregava, na cidade de Lincoln, Illinois. Reinhold deixou Illinois em 1914, para se inscrever no mestrado em Yale, e foi ordenado pelo Sínodo Evangélico em 1915.²

É a partir de 1915 que o envolvimento de Reinhold Niebuhr com o ativismo político inicia a jornada que o tornaria um dos intelectuais mais relevantes dos Estados Unidos no século 20. Um de seus irmãos, Richard (1894–1962), também está nesta lista (especialmente pela publicação do clássico Cristo e Cultura em 1951). Entre 1915 e 1928, Reinhold pastoreou uma igreja em um bairro operário em Detroit. Consternado com a desigualdade social e as péssimas condições de trabalho nas fábricas automobilísticas, tornou-se defensor do socialismo. Depois de retornar de uma viagem à Alemanha, em 1916, Reinhold aliou a militância socialista ao pacifismo, característica presente nos editoriais que escrevia para a revista The Christian Century.³

O posicionamento de Reinhold chamou a atenção do Union Theological Seminary, em Nova Iorque, que o convidou para que se tornasse professor da instituição. Reinhold passaria todo o restante da vida como professor de Filosofia da Religião e “Cristianismo Aplicado”, como ele chamou sua disciplina de ética cristã no Union.

Niebuhr em seu escritório no Union Theological Seminary (Foto: The New York Review of Books)

Reinhold se tornaria o Niebuhr conhecido pelo “realismo cristão” a partir de sua atuação no Union. Ele inicia sua carreira de professor do seminário ainda como socialista e pacifista. É neste contexto que conhece Dietrich Bonhoeffer (1906–1945), que havia se mudado para os Estados Unidos em 1930 para cursar a pós-graduação de teologia no Union Seminary. Ainda nos anos 1930, Niebuhr publica Moral Man and Immoral Society [Homem Moral e Sociedade Imoral] (1932), livro em que rompe definitivamente com o socialismo e o pacifismo, trazendo também críticas ao liberalismo (tanto o “econômico” quanto o “teológico”). Três fatores foram cruciais para que Niebuhr mudasse permanentemente seu posicionamento político e teológico: o diálogo com a neo-ortodoxia e as interações com Karl Barth (1886–1968), a ascensão do nazismo na Alemanha e o racismo nos Estados Unidos. Para Niebuhr, o socialismo e o liberalismo possuíam uma ingenuidade em relação ao poder da razão humana para trazer reformas sociais e políticas. Ainda que a nível individual as pessoas fossem criteriosas em questões éticas, este fator tende a diminuir drasticamente quando inseridas num coletivo: “tribos, movimentos e nações apenas olham para os seus e lutam para dominar outros grupos”.

Niebuhr entendia que liberalismo e socialismo defendiam a mudança partindo da compreensão de um modelo correto de sociedade. No entanto, as injustiças surgiriam a partir de um “orgulho destrutivo”, um desejo de “guiar a história”, que acaba ampliando a miséria humana — é neste “orgulho destrutivo” que ele localiza o pecado original. E por causa do pecado, que corrompe os sentidos, não é possível lutar contra injustiça “só com informação”: os opressores precisam ser resistidos; preferencialmente de forma não violenta. Não resistir não é uma opção. É a partir deste ponto, inclusive, que Martin Luther King Jr. (1929–1968) desenvolveu sua justificativa para os protestos não violentos no movimento de Direitos Civis.

Martin Luther King Jr., liderando a Marcha de Selma, em 1965 (Foto: The Guardian). A correspondência entre King e Niebuhr era frequente, e King o convidou para participar da marcha. Niebuhr enviou um telegrama respondendo a King, dizendo que não poderia ir, porque ainda se recuperava de um AVC; e desejou que a “luta pela liberdade e direitos humanos elementares” tivesse sucesso na corte do Alabama.

Niebuhr sofre o primeiro de uma série de AVCs no ano de 1952. Em decorrência disto, teve crescentes limitações físicas, mas não a ponto de impedir sua carreira de professor no Union Seminary, onde trabalhou até 1960. Depois, mudou-se para Stockbridge, Massachusetts. De lá, continuou a escrever até o ano de sua morte, em 1971.¹⁰

A democracia é necessária

A capacidade humana para a justiça faz a democracia possível, mas a inclinação humana para a injustiça faz a democracia necessária.¹¹

Essas foram as palavras de Niebuhr numa série de palestras realizadas na Universidade de Stanford, em 1944, que foram reunidas no livro The Children of Light and the Children of Darkness: A Vindication of Democracy and a Critique of its Traditional Defense [Os Filhos da Luz e os Filhos das Trevas: Uma Reivindicação da Democracia e uma crítica de sua Defesa Tradicional]. Ainda no clima de incerteza sobre o destino da Segunda Guerra Mundial (que terminaria em 1945), Niebuhr direcionou seu argumento para elaborar uma defesa contra o “barbarismo”, representado pelo fascismo e nazismo. Se a injustiça não pode ficar sem resistência, o mal trazido pelos fascistas e nazistas não poderia ser ignorado. Para ele, a defesa contra estes males consistia numa democracia sólida.

Adolf Hitler e Benito Mussolini num desfile em junho de 1940, na Alemanha (Foto: Wikimedia Commons)

No entanto, a democracia precisa de uma defesa mais realista. A visão liberal da democracia é otimista demais, gerando um risco para a própria democracia e, por fim, para a sociedade como um todo. Também, a liberdade democrática exige negociação e criação de consensos, o que coloca a democracia entre os perigos da confusão ou da tirania, sendo esta (aparentemente) justificada diante de uma visão extremamente pessimista da racionalidade humana. Portanto a democracia precisa de uma justificação mais realista e religiosa para antecipar com maior precisão seus perigos e falhas, como também para parecer mais razoável. A forma que a religião poderia contribuir para sustentar a democracia é pela doutrina cristã do pecado.

Nas teorias políticas não democráticas, o pessimismo que justifica o autoritarismo é inconsistente: ao mesmo tempo em que há bastante pessimismo em relação à criação de consenso, nenhum pessimismo é aplicado a quem detém o poder — o que só reforça a injustiça, já que o ser humano é inclinado para ela. Numa democracia, entretanto, existem sistemas de freios e contrapesos que limitam o poder, evitando autoritarismos. Porém, quando a democracia é justificada a partir de uma visão otimista, sem um balanço com uma perspectiva realista, o que resta é um sentimentalismo que levará ao desespero, que por sua vez abre portas para o pessimismo autoritário. Portanto, Niebuhr defende que apenas a visão cristã da natureza humana é a mais adequada para o desenvolvimento de uma sociedade democrática, evitando, assim, os males do otimismo liberal e do pessimismo autoritário.

Niebuhr reconhece que a democracia moderna surge da ascensão de uma classe média burguesa, que rompe com o sistema feudal a partir de uma série de fatores: busca por liberdade econômica e política, um ideal de igualdade parcialmente influenciado pelo cristianismo e pelo estoicismo, e a presunção que o progresso dessa classe média era igual ao progresso de todo o mundo. Embora, na perspectiva burguesa, a democracia tenha um caráter individualista, ela abrange idealmente a natureza espiritual e social do homem, lidando com as diversas variáveis da vida: “A comunidade requer liberdade tanto quanto o indivíduo, e o indivíduo precisa da comunidade mais do que o pensamento burguês compreendia.”¹²

Os filhos da luz e os filhos das trevas

É aqui que Niebuhr apresenta a distinção entre os filhos das trevas e os filhos da luz. Ele chama de filhos das trevas os cínicos morais, que vivem apenas segundo os próprios interesses. Os filhos da luz são aqueles que acreditam ser necessário direcionar ou disciplinar os interesses privados a partir de uma “lei maior” [higher law]. Os filhos da luz são aqueles que percebem a existência de diversos níveis de ordem no universo, e creem que os interesses privados devem acomodarem-se a esses níveis. Niebuhr coloca como filhos da luz os movimentos que criticaram a ascensão do nazismo e do fascismo: liberais, marxistas, católicos tradicionalistas, protestantismo liberal, entre outros.

Niebuhr também afirma que os filhos da luz não foram tão sábios como os filhos das trevas (cf. Lucas 16.8), pois subestimaram o poder do interesse privado, dando margem para aparição de cínicos morais (neste caso, o nacionalismo porque “não conhece outra lei a não ser sua própria força”). Neste sentido, a democracia moderna falha por ser altamente sentimentalista, e buscar soluções fáceis. Também, os filhos da luz são tolos por não perceberem o perigo do interesse privado em si mesmos, ou quando se deixam levar pelo otimismo e louvor da estrutura política de seu tempo, como foi o caso do protestantismo liberal ou do catolicismo tradicionalista, no contexto de Niebuhr.

Por conta da predominância do liberalismo no cenário americano, Niebuhr dedica a maior parte do tempo de suas palestras para analisá-lo. Ele indica um ponto cego nesta visão política, que poderia ser aproveitado pelos filhos das trevas. O liberalismo tende a afirmar que cada indivíduo busca seus próprios interesses, no sentido de adquirir mais vantagens para a sobrevivência. A ingenuidade liberal é não perceber que a categoria “interesses” também inclui prestígio social e poder. Dessa forma, os conflitos não se dão apenas no nível de divergências de interesse privado, mas também de interesses e forças mais gerais, coletivas. A grande dificuldade do liberalismo democrático, portanto, é perceber que a vontade de obter poder e prestígio pode se justificar no discurso mais aceitável da garantia da sobrevivência. Exemplo disso é a contradição entre a pretensa harmonia do interesse privado e da vontade geral, presente na filosofia social democrática, e o avanço da ciência e da tecnologia, que amplia o potencial de impor a vontade humana sobre a natureza, resultando numa sociedade industrial desigual e predatória. Outro exemplo, que representa o clímax dessa contradição é o fascismo, pois este é fundado numa sociedade tecnocrática que trabalha a partir da “vontade geral (da nação)”: “O credo liberal nunca é um instrumento explícito dos filhos das trevas. Mas é surpreendente como as forças das trevas são capazes de fazer um uso camuflado desse credo.”¹³

Niebuhr defende, então, que o cinismo moral nacionalista se aproveitou da ingenuidade do pensamento da democracia liberal e do seu sentimentalismo, e também de outros movimentos como o romantismo e o idealismo alemão, que embora reconheçam o valor da comunidade, também caíram no problema da ingenuidade. No caso do marxismo, que é extremamente crítico da ideologia liberal e utilitarista, se repete a mesma crença ingênua num estado de plena harmonia social. A diferença é que esta harmonia viria após a intensificação do conflito de classes, que implicaria na revolução e, por conseguinte, na pretendida superação do capital. Para ele, o marxismo é ingênuo por não perceber que a socialização da propriedade não implica no fim da injustiça, apenas traz novas formas de opressão — o que também abre portas para o autoritarismo. Niebuhr resume sua crítica ao liberalismo e ao marxismo da seguinte forma:

A vida exige uma organização mais orgânica e mútua do que as teorias da democracia burguesa propõem, mas a essência social da vida é mais rica e mais variada, e tem mais profundidade e tensões do que é previsto no sonho marxista de harmonia social.¹⁴

Nesse sentido, grande contribuição da doutrina cristã do pecado para a teoria social é que não importa quão grandes sejam as realizações humanas, sempre existirá alguma mancha de corrupção e egoísmo. Sem isso, o que se tem é a elaboração de soluções rápidas e fúteis aos conflitos nacionais e internacionais, porque as escolas de pensamento secularistas enxergam a raiz do problema apenas em contingências. Para Niebuhr, Deus dotou a humanidade com uma “potencialidade indeterminada”, no sentido que, considerando a finitude humana e as limitações naturais e históricas, não existe um “programa” que defina exaustivamente tudo que se pode fazer. Isto ele chama de as diversas “vitalidades humanas”, que são a capacidade de, por exemplo, fazer arte, ciência, se organizar politicamente, etc. Estas vitalidades são expressas em nível individual e coletivo, com diversos direcionamentos. No entanto, por conta do pecado, o “orgulho destrutivo” da humanidade trouxe também direcionamentos prejudiciais para as ações humanas. Assim, todo empreendimento humano, por mais bem intencionado que seja, carregará consigo os desdobramentos calculados e aqueles impensados, com potencial criativo ou destrutivo, a nível individual e social.

Niebuhr, então, afirma que os limites dados à liberdade humana surgem de padrões últimos de justiça, que todo tipo de sociedade tem. O objetivo dessas limitações é sempre evitar o potencial destrutivo das ações humanas e abrir espaço para o florescimento. Contudo, ele aponta para a discordância existente sobre esse padrão “auto evidente” de justiça , uma vez que não há padrões e instituições que estejam imunes aos contextos históricos e injustiças. Por isso, todo padrão de justiça deve estar sujeito à avaliação crítica:

Não há realidade histórica, seja a igreja ou o governo, seja a razão dos homens sábios ou especialistas, que não está envolvida no fluxo e relatividade da existência humana, que não está sujeita ao erro e pecado, e que não está tentada a exagerar seus erros e pecados quando são feitas imunes às críticas.

Toda sociedade precisa de princípios funcionais de justiça, como um critério para o seu direito e suas restrições. Os mais profundos desses conceitos, na verdade, transcendem a razão e estão enraizados em concepções religiosas do sentido da existência. Porém, cada afirmação histórica destes princípios está sujeita à correção. Se ela se torna definitiva, destruirá as potencialidades de fazer maior justiça, dado que a mentalidade de uma geração é incapaz de antecipar como será a vida das gerações futuras.¹⁵

As teorias democráticas modernas são incompletas porque existe um aspecto da liberdade humana que elas não consideram: a transcendência da liberdade humana sobre processos sociais e comunais só é compreendida numa cultura religiosa que oferece um universo de sentido em que essa liberdade é sustentada e significada. Niebuhr afirma isto pois, em seu entendimento, “culturas ostensivamente seculares” ordenam seus valores a partir de um elemento contingente que ocupa o lugar de um deus. Essa situação é inevitável, porque “tanto a fundação quanto o pináculo de qualquer estrutura cultural são religiosos; pois qualquer esquema de valores é determinado, em termos finais, pela resposta última que é dada à questão última sobre o significado da vida.”¹⁶ Assim, a fé burguesa e secularista tem “um aspecto deveras patético”, que é considerar as convicções de uma classe específica, que surgiu num contexto histórico específico no Ocidente, como valores universais. Neste sentido, o secularismo é uma religião como o cristianismo ou o islamismo são.

Aqui se encontra o verdadeiro desafio da democracia. Um governo democrático precisa conciliar vários grupos étnicos, sociais, religiosos e econômicos que compõem a comunidade política. Cada um destes grupos possui uma percepção distinta sobre o significado da vida e a forma de viver em sociedade. Além disso, essas percepções estão mais ou menos manchadas pelas contingências históricas e pelo pecado. Como fazer para que essas diferenças se harmonizem e enriqueçam a comunidade, ao invés de levarem à confusão e ao caos?

Niebuhr apresenta três possibilidades. A primeira delas é o primitivismo, ou seja, usar a força para negar as diferenças e retornar para uma “era de ouro” em que os problemas atuais não existiam. Porém, essa opção produz uma “unidade coagida”, que impede o potencial criativo das vitalidades humanas. A segunda opção é a indiferença, que enfatiza a relatividade dos valores últimos. No entanto, essa indiferença, ao jogar a discussão sobre estes valores para escanteio, abre margem para intensificação do conflito social — fator do qual o autoritarismo tira proveito. A terceira delas é a mais difícil de todas, porém a que permite maior solidez democrática: a humildade religiosa.

Levando em conta o que foi dito sobre a discussão do sentido último da vida, Niebuhr afirma que toda religião deve proclamar seus “melhores insights” na esfera pública. Porém, deve também ter a humildade de reconhecer que suas afirmações podem ser equivocadas. Para o cristão, isto significa trabalhar para “reconhecer a diferença entre a majestade divina e a criaturidade humana; entre a natureza incondicionada do divino e a natureza condicionada de todo empreendimento humano”, compreendendo “elementos de erro e pecado, de finitude e contingência que se assombram em toda afirmação das verdades mais sublimes.”¹⁷ Em outras palavras, o cristão precisa de humildade para distinguir a Palavra de Deus de nosso esforço de interpretação.

Quando não se tem o esforço de assumir os elementos de corrupção e egoísmo no posicionamento político, cria-se espaço para que os maiores perigos à democracia apareçam. Niebuhr afirma que cristãos sem humildade religiosa contribuíram para o racismo e a segregação dos negros nos EUA, e para o antissemitismo que justificou o nazismo. Tudo isso porque decidiram se fechar para as críticas (que ocorrem num regime democrático), e tornaram-se cegos para a aliança da sua fé com os projetos políticos do momento:

Toda devoção absoluta a fins políticos relativos (e todos os fins políticos são relativos) é uma ameaça à paz comunitária. Mas a humildade religiosa não é uma simples conquista moral ou política. Ela surge apenas da profundidade de uma religião que confronta o indivíduo com uma majestade e pureza mais suprema do que todas as majestades e valores humanos, e o persuade a confessar: “Por que você me chama bom? Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus.”¹⁸

Niebuhr era um crítico severo do messianismo americano. Suas principais críticas estão no livro The Irony of American History [A Ironia da História Americana]. Uma boa representação do messianismo americano está no afresco A Apoteose de Washington (1865), no Capitólio, que retrata George Washington (1732–1799) “ascendendo aos céus”, ou seja, alcançando status divino. (Foto: Wikimedia Commons)

Assim, para Niebuhr, o cristão tem a possibilidade (e também o dever) de criticar um projeto político, mas, também, de ser humilde e reconhecer o erro. Essa posição cristã, em relação ao erro de outros e do seu próprio pecado, é possível porque a fé cristã oferece uma “visão do alto”, afirmando que o controle do fluxo histórico pertence a Deus. Isto lhe confere uma visão de justiça única, que enriquece e aperfeiçoa a justiça de uma sociedade, por ser crítica à idolatria do indivíduo ou da comunidade, como Niebuhr aponta nos casos do liberalismo, do socialismo e do nacionalismo.

Essa crítica, lembrando, só é possível pela democracia. Assim como a possibilidade de ser corrigido por outros. Niebuhr não defende a democracia como um “idealista” (palavras dele), que defende ser o processo democrático o garantidor de progresso por si mesmo. Lidar com a organização política de uma comunidade envolve responsabilidade, e, em casos de conflito ascendente, a ordem deve ser preservada pelo uso do poder. No entanto, esta ordem deve, igualmente, evitar que os indivíduos sejam suprimidos por terem suas garantias políticas e constitucionais destituídas pela ambição comunitária, assim como impedir que indivíduos ou grupos imponham ordem às custas da liberdade. Uma vez que o potencial humano para criação ou destruição é inescrutável, uma sociedade livre deve permitir o florescimento da vitalidade humana, ao mesmo tempo em que constantemente reavalia as premissas que sustentam esse florescimento, a fim de evitar imposições arbitrárias e mitigar o potencial destrutivo da liberdade:

A comunidade requer liberdade tanto quanto o indivíduo, e o indivíduo precisa da comunidade mais do que o pensamento burguês compreendia. A democracia, portanto, não pode ser igualada à liberdade. Uma ordem democrática ideal busca unidade dentro das condições de liberdade, e mantém a liberdade dentro dos limites da ordem.¹⁹

Assim, a democracia, em si mesma, não oferece uma solução. Na verdade, ela é a ferramenta que permite o debate para resolução de problemas. O papel da democracia é nivelar o campo de jogo, e mitigar o potencial destrutivo da ação humana. Valores últimos são importantes para a democracia. Porém, Niebuhr destaca que, na elaboração de políticas, os valores em si mesmos não dão conta da complexidade da realidade e do fluxo histórico. Novos problemas surgem pela potencialidade indeterminada da humanidade, e a ambiguidade de nossas ações sempre estará presente. Por isso, “a democracia é o método de encontrar soluções imediatas para problemas insolúveis”.²⁰

Portanto, quem afirma ser capaz de concentrar o poder, de guiar o destino de uma nação, e garantir-se como única solução para o mal, já caiu na tentação do “orgulho destrutivo”. Está prestes a abandonar a democracia. No mínimo, é um filho da luz, cego por se blindar às críticas que um governo democrático permite. Contudo, ainda há esperança, antes que seja dada a sentença: “Se a luz que está dentro de você são trevas, que tremendas trevas são!” (Mateus 6:23)

Notas

1^ BENNETT, John C. Reinhold Niebuhr (American Theologian). Encyclopedia Britannica, disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Reinhold-Niebuhr>. acesso em: 5 set. 2021.

2^ ELIE, Paul. A Man for All Reasons. The Atlantic. disponível em: <https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2007/11/a-man-for-all-reasons/306337/>. acesso em: 5 set. 2021.

3^ BENNETT, Reinhold Niebuhr (American Theologian); ELIE, A Man for All Reasons.

4^ Para um relato mais detalhado do período que Bonhoeffer esteve no Union Seminary, cf. CAHILL, Charlie. The Pragmatic Roots of Bonhoeffer’s Ethics: A Reappraisal of Bonhoeffer’s Time at Union Theological Seminary, 1930–1931. German Studies Review. v. 36, n. 1, p. 21–39, 2013.

5^ Niebuhr é considerado por alguns como um dos principais teólogos da neo-ortodoxia. Contudo, essa afirmação é questionada em razão das diferenças entre ele e Karl Barth, que foram manifestas em diversas cartas e textos publicados por ambos. Cf. HAUERWAS, Stanley. Barth and Reinhold Niebuhr. in: The Wiley Blackwell Companion to Karl Barth. Chichester: Wiley Blackwell, 2020, v. 2, p. 633–644; RICE, Daniel F. Reinhold Niebuhr and His Circle of Influence. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 25–76.

6^ ELIE, A Man for All Reasons.

7^ STANFORD UNIVERSITY. Niebuhr, Reinhold. The Martin Luther King, Jr., Research and Education Institute, disponível em: <https://kinginstitute.stanford.edu/encyclopedia/niebuhr-reinhold>. acesso em: 5 set. 2021.

8^ ELIE, A Man for All Reasons.

9^ STANFORD UNIVERSITY, Niebuhr, Reinhold; ELIE, A Man for All Reasons.

10^ SHINN, Roger Lincoln. Reinhold Niebuhr. Encyclopedia.com, disponível em: <https://www.encyclopedia.com/people/philosophy-and-religion/protestant-christianity-biographies/reinhold-niebuhr>. acesso em: 6 set. 2021.

11^ NIEBUHR, Reinhold. Children of the Light and Children of the Darkness: A Vindication of Democracy and a Critique of its Traditional Defense. in: SIFTON, Elisabeth (Org.). Reinhold Niebuhr: Major Works on Religion and Politics. Nova Iorque: The Library of America, 2015, p. 354.

12^ Ibid., p. 357–358.

13^ Ibid., p. 369.

14^ Ibid., p. 388.

15^ Ibid., p. 394.

16^ Ibid., p. 424.

17^ Ibid., p. 429.

18^ Ibid., p. 438.

19^ Ibid., p. 358.

20^ Ibid., p. 420.

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Leonardo Cruz

Cristão, Presbiteriano, mestrando em História - UFF; voluntário na Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²).