Evangélicos e teorias da conspiração

Intuições sobre causas históricas dessa relação

Leonardo Cruz
7 min readMay 17, 2020
It’s always Sunny in Philadelphia — Pepe Silvia

Recentemente, a fundação BioLogos teve de fazer um apelo a cristãos para que não compartilhassem fake news sobre a COVID-19. Esse apelo foi visto também num informativo da Igreja Presbiteriana do Brasil, que procurou esclarecer alguns mitos sobre o surgimento do novo coronavírus. A revista Christianity Today também aponta que, seguindo uma pesquisa recente da Pew Research Center, é possível dizer que cristãos são o grupo que mais tende a acreditar em fake news sobre a COVID-19.

Creio que cristãos (especialmente evangélicos) acreditam em Teorias da Conspiração não porque são naturalmente ignorantes, mas sim porque existe um conjunto de ideias surgido em um momento da história do cristianismo que permite esse tipo de crença conspiracionista.

Este texto é apenas uma pequena nota, uma “intuição” das razões que permitem a circulação de ideias conspiracionistas entre evangélicos. Em algum momento no futuro, se Deus permitir, escreverei algo mais aprofundado.

Como Teorias da Conspiração Funcionam?

Em primeiro lugar, conspirações existem. Agora, em algum lugar do mundo, alguém está tentando subornar algum político em troca de algum favor. Contudo, criticar Teorias da Conspiração não é negar a existência de acordos espúrios e negociatas como o Watergate ou o Mensalão, ou de planos secretos como a Conferência de Wannsee. Esses temas não são considerados como teorias conspiratórias porque existe uma quantidade considerável de fontes que comprovam a existência das conspirações, e um tratamento dessas fontes que explica o desenrolar desses acordos secretos em correlação com outros eventos históricos observados e já compreendidos. Existe uma diferença abismal entre construir uma História das Conspirações e fazer uma Teoria da Conspiração. Em outras palavras, se fôssemos usar a culinária como ilustração, a partir do mesmo relato da existência de conspiração um historiador é capaz de fazer aquele hambúrguer gourmet 5 estrelas enquanto o conspiracionista faz um podrão de procedência duvidosa.

Em segundo lugar, não são apenas evangélicos que acreditam em Teorias da Conspiração. Existem mecanismos das teorias conspiracionistas que indicam tendências de comportamento e compreensão de mundo que podem estar presentes em diversos grupos sociais. Antes de olhar para o que é específico aos evangélicos, precisamos entender esses mecanismos:

  1. Nada é por acaso: Para o conspiracionista, a História é pura intencionalidade; não existe acidente, erro de cálculo, ou imprevisibilidade nos processos históricos. A História é um jogo de soma zero: se alguém ganha, é porque alguém perde.
  2. Nada é o que parece: Por isso, as aparentes falhas ou acidentes na História são, na verdade, falsificações — existem agentes, projetos, forças que atuam secretamente por trás do que é observável. Isso tem relação com o fato de conspiracionistas serem conhecidos por defenderem um conhecimento estigmatizado da realidade; eles afirmam que suas teorias são “leituras alternativas” que são rejeitadas pela academia por preconceito, jogos de poder e medo que a “verdade oculta” seja revelada.
  3. Tudo está conectado: Porque não existe acaso e as aparentes falhas são falsificações, o padrão do desenrolar dos processos históricos estaria em todo lugar, seja de modo evidente ou disfarçado.
    ex: As mensagens subliminares em filmes da Disney, Símbolos vermelhos como mensagens ocultas do comunismo...
  4. Monopólio das virtudes: A busca por padrões tende a simplificar a rede de eventos históricos a uma luta entre agentes e grupos bem definidos, que são tidos como evidentemente bons ou maus.
    ex: A Maçonaria, os Illuminatti, os Judeus...
  5. Idealizações: As Teorias da Conspiração são estruturadas para reforçar as imagens do que é tido como evidentemente bom e mau na mente do conspiracionista. Isso indica também que um mesmo evento pode ser narrado por diferentes teorias conspiracionistas, a depender do grupo que cria a narrativa. Se, por exemplo, existe o bolsonarista dizendo que o “vírus chinês” é uma arma para a construção do comunismo global, também temos o marxista afirmando que a COVID-19 é uma criação dos EUA para criar uma crise no capitalismo, que possibilite uma reinvenção do sistema antes de seu colapso, como também o guerrilheiro congolês que acredita na criação do coronavírus pela OMS para, por meio de medidas sanitárias, mascarar o processo de submissão econômica e cultural dos africanos ao Ocidente.

Além dos mecanismo narrativos, as Teorias da Conspiração são caracterizadas por sua abrangência:

  1. Conspiração eventual: A conspiração ocorreu em torno das ações ligadas a um evento ou uma série de eventos específicos.
    ex: Envio da China de testes de COVID-19 “viciados”, Caixões enterrados vazios para fazer propaganda de terror sobre a letalidade do coronavírus...
  2. Conspiração Sistêmica: A conspiração ocorre com fins de atingir uma região, um país, ou o mundo inteiro, tendo organizações como o centro da narrativa.
    ex: A mídia articula propaganda de terror em massa sobre a COVID-19, Maçonaria e Rede Globo usam Sergio Moro para articular golpe contra Bolsonaro...
  3. Super-conspirações: São teorias conspiratórias que conectam vários níveis de ações, conjugando conspirações eventuais e sistêmicas, numa narrativa que apresenta uma guerra pelo “controle da História”.
    ex: China criou coronavírus com apoio da ONU e outras instituições globalistas para usar a COVID-19 como arma biológica e forçar os países do Ocidente a aderir a quarentena/lockdown, iniciando um experimento mundial de preparação para um futuro governo comunista internacional…

O caso evangélico

Como eu disse acima, diversos grupos acreditam em Teorias da Conspiração porque existe um reforço das idealizações do bem e do mal. No caso dos evangélicos, existe um conjunto de ideias que molda as percepções de bem e mal, a ponto de permitir a crença em conspiracionismos. Nem sempre todas essas ideias atuam em conjunto, dada a variedade de campos dentro do movimento evangélico. Contudo, creio que são elementos que se fazem presentes de forma crucial para entender a tendência evangélica ao conspiracionismo.

  1. Dualismo: Existe uma inclinação em grande parte dos evangélicos a adotar uma visão da relação entre cristianismo e cultura que coloca a fé cristã como um elemento diametralmente oposto ao engajamento cultural, seja a nível material (a ponto de buscar o isolamento, como os menonitas) ou a nível simbólico (como os grupos que defendem uma versão “gospel” do que é produzido culturalmente). Neste caso, a cultura, no sentido amplo, é identificado como o reino do pecado, e tudo que vem de lá é do Diabo. Isso dá origem a teorias que enxergam produções culturais de não cristãos como armas satânicas para lutar contra a igreja.
    ex: Artistas da Globo/Hollywood fazem sucesso porque têm pacto com o Diabo e suas produções são guiadas por princípios satanistas para corromper a moral…
  2. Religião x Ciência: Alguns evangélicos conseguem engajar-se culturalmente a nível material e simbólico em algumas áreas, mas têm uma grande dificuldade com a Ciência. Isso porque um grande número de fieis e pesquisadores (acadêmicos cristãos ou não) acreditam no Mito do Conflito Permanente: a ideia que Ciência e Religião são duas instituições claramente identificáveis e que vivem em conflito desde o início da civilização. Esta é uma ideia que surge no século 19, durante um processo de militância pelo impedimento da presença de clérigos nas instituições científicas na Inglaterra. Contudo, esse mito criou raízes tanto entre cristãos e não-cristãos, criando narrativas conspiratórias de ambos os lados sobre os momentos históricos de conflito Religião x Ciência, empobrecendo o entendimento acerca dos dois campos.
    ex: Fósseis são criação de cientistas para enganar crianças e disseminar ateísmo e evolucionismo, Darwin se arrependeu de seus escritos no fim de sua vida…
  3. Escatologia: Um dos elementos da Teologia que influencia a visão dos cristãos sobre a História é o estudo sobre Fim dos Tempos, ou seja, a Escatologia. Neste caso, é importante notar que a maioria dos evangélicos segue duas vertentes teológicas no entendimento do Fim dos Tempos. Em primeiro lugar, existe o pré-milenismo. O Milênio é o período de mil anos descrito no capítulo 20 do livro de Apocalipse, no qual Jesus finalmente retorna e instaura seu reino eterno. Existe uma enorme discussão sobre quando esse reino é instaurado e sua natureza, mas no caso do pré-milenismo, a crença é que Jesus retorna fisicamente antes do Milênio (ou seja, antes de instaurar seu reino — por isso, “pré-”). Em segundo lugar, existe o dispensacionslismo. Este movimento teológico surgido no século 19 acredita que Deus tem diferentes modos de administrar a História, que são as dispensações. Esses modos distintos se alternam progressivamente até o Fim dos Tempos, e cada mudança de dispensação anuncia os desígnios divinos para o presente e para o futuro. O que há de comum entre o pré-milenismo e o dispensacionalismo (além do “ditado” que todo dispensacionalista é pré-milenista, mas nem todo pré-milenista é dispensacionalista) é que ambos tendem a interpretar a Bíblia de maneira literalista e a buscar uma “interpretação profética” da História, gerando o que alguns historiadores chamam de Historicismo Dispensacionalista: a ideia de buscar nas mudanças históricas a “conexão oculta” que revela o que Deus quer fazer com a História e que indica a proximidade do Milênio. Por exemplo, se antes do Fim dos Tempos “as nações adorarão em Sião” (Zacarias 14:16), um indício de um direcionamento para essa situação é a instalação de embaixadas em Jerusalém. Entretanto, é preciso considerar que o problema não é um evangélico ser pré-milenista ou dispensacionsliata em si, mas defender versões pouco refinadas dessas linhas teológicas a ponto de permitir a crença em Teorias da Conspiração.
    ex: Chips (cartdão de crédito, celular, etc.) são a marca da Besta, China é o dragão de Apocalipse 12, Obama é o Anticristo, etc…

Por fim, deixo a recomendação do profeta:

O Senhor me advertiu firmemente de que não pensasse como todos os outros. Disse ele: “Não chame tudo de conspiração, como eles fazem; não viva com medo do que eles temem. Considere o Senhor dos Exércitos santo em sua vida; é a ele que você deve temer. Ele é quem deve fazê-lo estremecer; ele o manterá seguro […]. (Isaías 8:11–14)

Referências

Como funcionam teorias da conspiração?

Eirikur Bergmann. Conspiracy and Populism: the Politics of Misinformation. Palgrave Macmillan, 2018.

Jan-Willem van Pooijen. The Psychology of Conspiracy Theories. Routledge, 2018.

Michael Barkun. A Culture of Conspiracy: Apocalyptic Visions in Contemporary America. University of California Press, 2ª Edição, 2013.

Especificidades dos evangélicos

David Livingstone, D. G. Hart e Mark Noll (org). Evangelicals and Science in Historical Perspective. Oxford University Press, 1999.

George Marsden. The Fundamentalists. Oxford University Press, 2ª Edição, 2006.

Mark A. Noll. The Scandal of the Evangelical Mind. Eerdmans, 1994.

Peter Harrison. Os Territórios da Ciência e da Religião. Ultimato, 2017.

Ronald Numbers. Galileu na Prisão e Outros Mitos Sobre Ciência. Gradiva, 2012.

Ronald Numbers. Science and Christianity in Pulpit and Pew. Oxford University Press, 2007.

--

--

Leonardo Cruz

Cristão, Presbiteriano, mestrando em História - UFF; voluntário na Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²).