História e Fundamentalismo

George Marsden sobre o papel do cristão historiador

Leonardo Cruz
5 min readFeb 23, 2020

Tradução de George Marsden: Fundamentalism and American Culture, Oxford University Press, 2006. p. 259–260.

Como se sabe, a História era a questão central na controvérsia fundamentalista — modernista. O cristianismo e a Bíblia deveriam ser vistos através das lentes do desenvolvimento cultural, ou a cultura deve ser vista através das lentes das Escrituras? Os fundamentalistas e os modernistas compartilhavam uma suposição comum sobre esse ponto. Cada um assumiu que o abandono, ou, pelo menos, uma redefinição substancial do ensino cristão tradicional sobre os atos de Deus na história estava implícita no método histórico moderno que explicava os eventos em termos de forças culturais naturais. Essa suposição sobre a História, que estava no coração da antiga controvérsia, me parece incorreto. É doutrina cristã básica que existe uma distância sublime entre Deus e sua criação, e ainda assim Deus entra na História humana e age em circunstâncias históricas reais. A consciência de que Deus age na História de maneiras que só podemos conhecer no contexto de nossa experiência culturalmente determinada deve ser central para uma compreensão cristã da História. No entanto, o cristão não deve perder de vista a premissa de que, assim como na humanidade da Encarnação, Cristo não compromete sua divindade. A realidade da outra obra de Deus na História, que vai muito além do que poderíamos explicar como fenômenos naturais, não é comprometida pelo fato de ser culturalmente definida.

A História do cristianismo revela uma mistura desconcertante de fatores humanos e divinos. Como Richard Lovelace disse, essa história, quando vista sem a devida consciência das forças espirituais envolvidas, “é tão confusa quanto um jogo de futebol no qual metade dos jogadores são invisíveis”¹. O presente trabalho, uma análise das influências culturais na crença religiosa, é um estudo das coisas visíveis. Como tal, deve necessariamente refletir mais do que um pouco de simpatia pelo modo moderno de explicação em termos de causação histórica natural. No entanto, seria um erro supor que essa simpatia é incompatível ou até mesmo antagônica a uma visão da história na qual Deus, revelado nas Escrituras, é a força dominante e com a qual outras forças espirituais invisíveis estão lutando. Eu acho que uma visão cristã da história é esclarecida se considerarmos a realidade mais ou menos como o mundo retratado nas obras de J. R. R. Tolkien. Vivemos em meio a disputas entre forças espirituais grandes e misteriosas, que entendemos apenas imperfeitamente e cujas verdadeiras dimensões apenas ocasionalmente vislumbramos. No entanto, frágeis que somos, nós desempenhamos um papel nesta história, seja ao lado tanto dos poderes da luz como dos poderes das trevas. É de importância crucial, portanto, que, pela graça de Deus, mantenhamos nossa perspicácia em relação a nós e discirnamos a vasta diferença entre as forças reais para o bem e os poderes das trevas disfarçados de anjos de luz².

Esta perspectiva ampla, penso eu, é o contexto adequado para entender a modesta tarefa do historiador de tentar identificar os elementos culturais formativos que moldaram ou distorceram adequadamente nosso entendimento de Deus e de sua revelação. Visto que a obra de Deus aparece para nós em circunstâncias históricas em que humanos imperfeitos são os principais agentes, as ações do Espírito Santo na Igreja estão sempre entrelaçadas com fatores culturalmente condicionados. A tarefa do teólogo é tentar estabelecer, a partir dos critérios das Escrituras, direcionamento para determinar o que na História da Igreja é verdadeiramente a obra do Espírito. O historiador cristão adota uma abordagem oposta, embora complementar. Ainda que se deva ter em mente certos critérios teológicos, o historiador pode se abster de julgamentos explícitos sobre o que é propriamente cristão enquanto se concentra em forças culturais observáveis. Ao identificar essas forças, fornece material que indivíduos de várias vertentes teológicas podem usar para ajudar a distinguir a verdadeira obra de Deus de práticas que não têm maior autoridade do que os costumes ou modos de pensar de um tempo e local específicos³. Como alguém julga qualquer fenômeno religioso, contudo, dependerá mais da posição teológica que da identificação das condições históricas em que ela surgiu.

Mais especificamente, apontar como o fundamentalismo americano foi moldado por circunstâncias históricas não é colocar esse movimento em nenhuma categoria especial na história do cristianismo. Como Deus trabalha entre seres humanos imperfeitos em contextos históricos, o cristianismo “puro” ou “perfeito” raramente pôde existir neste mundo, se é que existiu. Deus em sua graça trabalha através de nossas limitações; por essa mesma razão, devemos pedir a graça de reconhecer quais são essas limitações. Portanto, podemos — e devemos — identificar cuidadosamente as forças culturais que afetam as versões atuais do cristianismo.

Na História da igreja americana, muitos autores apontaram o entrelaçamento do cristianismo com os vários “ismos” da época — nacionalismo, socialismo, individualismo, liberalismo, conservadorismo, cientificismo, subjetivismo, objetivismo de senso comum, romantismo, relativismo, otimismo cultural, pessimismo cultural, intelectualismo, anti-intelectualismo, egoísmo ético, materialismo e assim por diante. O fundamentalismo, como vimos, incorporou alguns deles em sua visão do cristianismo. No entanto, Deus certamente pode trabalhar com algumas dessas combinações. A confiança dos cristãos em Deus pode ser misturada ou confundida com algumas suposições, ideais e valores culturalmente formados. Inevitavelmente, isso acontecerá. O perigo é que nossos amores, alianças e entendimentos culturalmente definidos dominem e tenham precedência sobre nossa fidelidade a Deus. Portanto, a identificação de forças culturais, como das que tratam este livro, é essencialmente um empreendimento construtivo, com o objetivo positivo de encontrar tesouros em meio a escombros.

George Marsden (1939-), é professor emérito de História na Universidade de Notre Dame e autor de diversos livros sobre a relação entre evangélicos e cultura nos Estados Unidos, tendo recebido o Prêmio Bancroft da Universidade de Columbia em 2004 por Jonathan Edwards — A Life, biografia do pastor congregacional Jonathan Edwards (1703–1758), que foi sintetizada numa versão para o grande público e traduzida em português pela Editora Fiel em 2015 com o título A Breve Vida de Jonathan Edwards.

Notas

1^ Richard F. Lovelace: Dynamics of Spiritual Life - An Evangelical Theology of Renewal. Downers Grove, 1979. p. 256.

2^ Sou devedor a Joy L. Johnson, “The Theology of Middle-earth,” dissertação de mestrado, Trinity Evangelical Divinity School, 1978.

3^ Discuti esses pontos com maior profundidade quando escrevi A Christian Perspective for the Teaching of History, em George Marsden e Frank Roberts (org.): A Christian View of History? Grand Rapids, 1975.

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Leonardo Cruz
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Written by Leonardo Cruz

Cristão, Presbiteriano, mestrando em História - UFF; voluntário na Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²).

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