Caminho dos antigos
O culto cristão na pós-modernidade: parte 5— Ortodoxia Radical e Adoração Formativa
Na quarta parte desta série, foi demonstrado como os movimentos da Teologia do Coaching, Teologia dos Sete Montes e Adoração Espontânea são fruto de uma mistura do pano de fundo pós-moderno com um engajemento superficial da teologia cristã — que é fruto de um abandono intencional do legado da História da Igreja. Neste texto, veremos uma proposta, também pós-moderna, de remediar este problema.
Uma teologia pós-secular
“O evangelicalismo não é o problema. O evangelicalismo que cortou suas raízes no cristianismo antigo é um problema.” (Kenneth Stewart)¹
Na segunda parte desta série, exploramos alguns dos significados do termo pós-modernidade. Em primeiro lugar, pós-modernidade significa um período específico da História, que, literalmente, teria surgido “após a modernidade”. Vimos que, neste sentido, todos somos pós-modernos, pois independentemente de sermos cristãos ou não, vivemos num mesmo momento da História. Contudo, a pós-modernidade, como qualquer período histórico, é constituída de ideias que só poderiam ter surgido neste contexto específico. Em outras palavras, a pós-modernidade apresenta um conjunto de ideias que, ainda que sejam contrastantes, compartilham uma base comum. Este segundo sentido normalmente aparece como pós-modernismo, que, em resumo, é conhecido pela crítica de elementos centrais do Iluminismo: a ideia de “Razão Universal”, a ideia de um crescente “progresso” em virtude do exercício da Razão e da Ciência, como também a visão em que a verdade é buscada de maneira autônoma pela Razão — uma vez que estamos envolvidos em práticas e narrativas das nossas culturas, é impossível que exista uma “neutralidade” da Razão, de acordo com o pós-modernismo.
É nesse contexto que a Ortodoxia Radical (OR) surge, e pode ser qualificada como uma Teologia Pós-Moderna. Não apenas por ter surgido no período da pós-modernidade, mas por partilhar dessas críticas com outras ideias pós-modernas. Pode parecer contraditório que um movimento protestante com nome de Ortodoxia seja considerado pós-moderno, pois a pós-modernidade é vista negativamente entre os cristãos, sendo um período de ataques massivos às bases da fé evangélica pelos questionamentos à autoridade e veracidade das Escrituras, negação da divindade de Cristo, a existência de Deus e outros pontos doutrinários importantes por conta de um secularismo manifesto. Entretanto, a proposta da OR não é abraçar a rejeição dessas doutrinas como outras teologias pós-modernas fazem², mas perceber no pós-modernismo ferramentas críticas importantes para combater as bases iluministas de teologias liberais e conservadoras³.
Ao mesmo tempo, a OR entende a pós-modernidade como uma intensificação da modernidade — e por isso se afasta do caminho seguido por outras teologias pós-modernas. Por exemplo, a ideia iluminista de “Razão Universal” afirma que existem verdades que são compreendidas por qualquer ser humano, basta que se exercite a Razão. Isto serviu de base para afirmar que a religião não tinha caráter de “verdade universal”, por conta da diversidade de religiões. Sendo assim, a religião era uma escolha privada, e então o espaço público deveria ser caracterizado pelo discurso racional, porque a Razão seria “neutra” e capaz de levar todos às mesmas verdades. Este processo é conhecido como secularização. Quando o pós-modernismo, por sua vez, afirma que a religião é apenas um fruto de narrativas e práticas culturais contextualizadas, o papel da religião se torna ainda mais restrito na sociedade, o que revelaria uma evolução do quadro surgido no Iluminismo. A Ortodoxia Radical, no entanto, não entende que classificar o Evangelho como uma “narrativa” seja um problema — afinal, Deus criou o universo por seu falar, o Verbo se fez carne, a Palavra sempre foi um aspecto central da fé cristã⁴, e o fato de que a proclamação [kerygma] era a maneira como a Igreja cresceu nos primeiros séculos evidencia que o Evangelho foi capaz de vencer as narrativas dos ídolos antigos, como também aponta que na proclamação do Evangelho hoje os cristãos são capazes de derrotar os ídolos modernos e pós-modernos⁵.
Deste modo, a OR demonstra porque é uma teologia pós-secular: os ídolos antigos tinham suas próprias narrativas e histórias, seus mitos, e os primeiros cristãos perceberam isso. Ela procura demonstrar, especialmente a partir de um diálogo com a teologia da Igreja Antiga, que os ídolos do nosso tempo — o Mercado, o Poder, a Tecnologia, etc. — também tem seus mitos, e, portanto, nossa sociedade ainda é, de certo modo, “religiosa”, e assim se revela a ilusão de uma “neutralidade religiosa” do secularismo. Assim sendo, é apenas quando cristãos estão imersos na narrativa do Evangelho, nos relatos da relação de Deus com seu Povo ao longo da História, é que se pode destronar os falsos deuses contemporâneos⁶. Nas palavras de John Milbank, professor da Universidade de Nottingham e um dos precursores da OR: “A Ortodoxia Radical, embora faça suas críticas à modernidade, procura salvá-la. Ela não endossa ideias pré-modernas, mas uma versão alternativa da modernidade”⁷.
Por que “Ortodoxia Radical”?
A proposta da OR não é uma “teologia saudosista”, como o nome parece sugerir. Antes, busca “lembrar as raízes que nutrem” o pensamento cristão⁸, que estão presentes “nas fontes antigas e medievais, incluindo os Pais Orientais”, com o objetivo de ter naquilo que é basilar e comum a todos os cristãos um firme fundamento na crítica ao pós-modernismo⁹. A intenção é suprir uma deficiência presente de modo geral nos evangélicos: a incapacidade de perceber algum valor no cristianismo anterior à Reforma Protestante. Este tipo de rejeição ocorreu de maneira distinta em diferentes setores do evangelicalismo. Enquanto fundamentalistas tenderam ao pragmatismo, e o diálogo com o passado cristão parecia ser um impedimento para adaptação de teologia e culto necessárias para novos tempos (naquela ideia de “adaptar a forma, e manter o conteúdo”), liberais e progressistas tiveram sua contribuição ao negar doutrinas históricas, como o nascimento virginal de Cristo, sua ressurreição corpórea e seu retorno no fim dos tempos¹⁰. Conservadores e liberais têm sua parcela de culpa na deficiência que evangélicos têm de interagir com o passado cristão e as raízes da Teologia. É da procura deste diálogo com a História da Igreja, e especialmente a Patrística, que vem a ideia de Ortodoxia, enquanto que a busca por elementos presentes nas bases (raízes) do pensamento cristão dá o sentido de Radical.
Entretanto, o sentido de Radical apresenta mais uma nuance. Além do esforço em dialogar com as raízes doutrinárias da Igreja, a OR acredita que “não existe um único aspecto da existência humana ou da Criação que pode ser apropriadamente entendido ou descrito fora da iluminação da Revelação”¹¹. Os ídolos modernos, como o Mercado, Poder e a Tecnologia, a partir de seus mitos, fazem com que todas as esferas da existência girem ao redor de si mesmos, ocupando o espaço de fonte de sentido das nossas vidas. Esta é uma tentativa de falsos deuses usurparem o lugar que é genuinamente de Cristo, em quem “habita toda a plenitude”, e que “reconciliou consigo todas as coisas” (Colossenses 1:19, 20). O outro significado de Radical está em perceber que a narrativa do Evangelho não ocupa apenas a “esfera religiosa” da vida: antes, ela exige uma reflexão sobre onde estão firmadas as nossas raízes existenciais¹², pois é lá que os ídolos atuam, fazendo-nos procurar o sentido da vida e colocar nossa esperança no dinheiro, na política, ou em qualquer outra coisa que não seja o verdadeiro Deus.
A certeza da Ortodoxia Radical de que no Evangelho está a segurança para a melhor compreensão do mundo vem de sua afirmação de um “preenchimento cristológico do espaço e do tempo”. Isto significa afirmar que em Jesus, “verdadeiro Homem, verdadeiro Deus”, se encontra a possibilidade de reconciliar Criador e criatura, Eterno e Finitude, Deus e Homem¹³: pois por meio de Cristo, “Todas as coisas foram feitas […]; sem ele, nada do que existe teria sido feito” (João 1:3). Portanto, desde a Criação, todo o universo depende de Deus para seu sustento e seu sentido¹⁴. A implicação disto é que cristãos precisam imergir na narrativa do Evangelho e seguir num diálogo com a Ortodoxia como lugar prioritário em sua formação para atuar em diversas áreas. Não porque a Teologia trate, por exemplo, de modo exaustivo o conteúdo de disciplinas como a Filosofia, História, Biologia ou Química, mas porque é no Evangelho que se compreende o lugar de cada uma dessas áreas na Criação e seu direcionamento para o próprio Deus (isto é, como elas encontram seu sentido em Deus)¹⁵, pois em Cristo “estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Colossenses 2:3) — e a partir daí cristãos podem exercitar sua criatividade e raciocínio em conformidade com a vontade de Deus. Assim, a OR procura romper com a visão evangélica de separação entre uma esfera secular e outra sagrada, a partir de uma visão mais integral da Criação¹⁶. Esta perspectiva é um contraponto à visão da Teologia dos 7 Montes, que afirma a necessidade de “revelações proféticas” para que cristãos atuem nos “7 Montes da Sociedade”, que são sete áreas que moldam e controlam estruturas culturais. Esta teologia defende que após a expulsão das entidades demoníacas presentes no domínio de cada uma destas sete áreas, os cristãos que chegarem ao “topo de cada um dos sete montes” precisam “criar uma atmosfera” para que recebam revelações diretas de Deus e possam trabalhar nestas áreas. Contudo, essa visão nega um elemento central do cristianismo, que é o sustento contínuo da Criação pelo próprio Deus, o que implica em afirmar que existem leis e estruturas presentes em cada aspecto da Criação determinados por Deus, percebidos de maneira mais clara a partir do diálogo entre o estudo da Natureza e das Escrituras — defendido pela Ortodoxia Radical. Ao negar esta verdade histórica do cristianismo, a Teologia dos 7 Montes não rompe com a visão dualista entre secular e sagrado, mas parece oferecer a este dualismo uma “visão renovada” com um toque de misticismo.
A possibilidade que cristãos usem aquilo que lhes é oferecido no Evangelho para justificar ídolos modernos e pós-modernos é uma preocupação da OR, e por isso a insistência de que não existe uma maneira “neutra” de abordar, por exemplo, política, ciência ou sexualidade — se cristãos não compreenderem apropriadamente que Cristo é Senhor sobre toda Criação, acabarão adotando a linguagem dos ídolos contemporâneos presentes em cada uma dessas áreas¹⁷. Um dos problemas que a Ortodoxia Radical tentou abordar foi a crescente tendência do uso da linguagem digital para dar sentido à vida. Stephen Long afirma:
Antes que estivéssemos perdidos e entregues à linguagem dos gigabytes, memória RAM, cibernéticos, navegadores de internet, etc., a Ortodoxia Radical nos lembra que existia (e espera-se que ainda exista) uma linguagem que importa: Trindade, Jesus, união hipostática, igreja, Espírito Santo, criação ex-nihilo, transubstanciação. Voltar o secular para suas premissas teológicas reprimidas pode nos curar da morte que o secularismo nos oferece¹⁸.
Esta inquietação da OR com o avanço da “linguagem cibernética” para definir o direcionamento social faz sentido se observarmos o surgimento das Redes Carismáticas Independentes, um novo modelo de igrejas que fala em “atualização ministerial, ativação profética e o destravar de destinos”, que é sinal da incorporação linguagens das mídias digitais em virtude do abandono da Teologia como lugar privilegiado da reflexão cristã, e da utilização massiva de recursos digitais no culto por essas igrejas. A OR traz como resposta a este dilema um diálogo com o passado cristão porque crê que “a iluminação que o Espírito Santo deu à Igreja Antiga tem muito a dizer para a igreja contemporânea — e para o mundo”¹⁹.
A Adoração Formativa
“O culto é o coração do discipulado.” (James K. A. Smith)²⁰
Embora a OR pareça conversa para acadêmicos e seminaristas de Teologia, sua intenção de cobrir a lacuna existente entre evangélicos no que tange ao passado da Igreja atinge uma esfera que é palpável para todo cristão: o culto. Assim como o Iluminismo atingiu os seminários de Teologia, também impactou o culto cristão — especialmente se pensarmos que em muitas igrejas o conhecimento doutrinário em si mesmo tornou-se sinônimo de espiritualidade. Se você já foi numa igreja em que o momento dos louvores parecia apenas um aquecimento musical enquanto se espera o momento da pregação, você já esteve em um culto “racionalista”²¹.
A maneira como a OR procura solucionar essa questão é por meio da recuperação da dimensão sensorial do culto. Entretanto, ao invés de buscar no sentimentalismo a cura para o racionalismo, a OR recorre a Agostinho de Hipona (354–430) e sua visão de que o desejo é o caminho pelo qual as coisas podem ser conhecidas²². Afinal, foi ele quem disse que “nosso coração não descansa enquanto não encontra repouso em [Deus]”²³. Se Deus exige um direcionamento de nossas vidas a ele, este direcionamento “trabalha em nós, não pela conquista do intelecto, mas pelo fascínio”²⁴— e o mesmo vale para os ídolos modernos. Por exemplo, James K. A. Smith conta sobre quando estava lendo uma revista cristã, e nela havia uma propaganda com o rosto de um homem, e em sua testa estava escrito: “VOCÊ É O QUE VOCÊ PENSA!”. Smith identifica essa frase como uma aplicação do racionalismo iluminista: que seres humanos são, fundamentalmente, criaturas pensantes. Disto viriam outras estratégias de discipulado, como a ideia de memorizar versículos bíblicos para que, na hora da tentação, o cristão se lembre dos versículos e não peque²⁵. Entretanto, essa mentalidade ignora que não conseguimos “pensar nosso caminho” para a santidade: é preciso praticar a santidade. O mandamento de fazer discípulos é sobre ensinar a obedecer tudo o que Jesus ordenou (Mateus 28:20), e não apenas “memorizar” — e para isso é preciso que nosso coração deseje o que Deus deseja. Não à toa foi dito que era necessário guardar o coração acima de tudo, “pois dele procedem as fontes da vida” (Provérbios 4:23 — ARA), e que “onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração” (Mateus 6:21). Smith, inspirado pela OR, defende que o culto é o momento para que nossos corações sejam “recalibrados” por Deus: “o culto cristão não nos ensina apenas a pensar, mas, sobretudo, nos ensina a amar”²⁶.
Smith se fundamenta na afirmação da OR da inexistência da divisão entre teoria e prática: uma visão de mundo dualista coloca os dois como polos excludentes — seja na ideia de que a Teologia impede o cristão de “colocar a mão na massa”, seja na ideia de que a “reflexão teológica” necessariamente antecede o agir cristão. Esse dualismo é ilusório, pois além de ignorar que o próprio ato de pensar é uma prática²⁷, não é compatível com o testemunho da Igreja Antiga: pois não havia separação entre teoria e prática, Teologia e Liturgia. Jaroslav Pelikan afirma que “é impossível ler os tratados dos apologistas separados do que a Igreja ensinava, acreditava e confessava”. Exemplos disso seriam Justino Mártir (100–165), pois é “certo que a própria fé de Justino era mais nutrida pelo que a congregação confessava e ensinava sobre Cristo, seu Senhor, que pelo que ele mesmo interpretava de forma teórica”, ou Clemente de Alexandria (150–215), ao afirmar que Cristo “transformou o pôr-do-sol em aurora, e por meio da crucificação, transformou morte em vida”, evidenciaria que esta declaração não surgiu a partir de uma Teologia que é distante do culto — aliás, ela teria sido justamente parte da liturgia da Igreja. Pelikan ainda cita Irineu de Lyon (130–202), Cipriano de Cartago (210–258), Tertuliano (155–220) e Hilário de Poitiers (315–368), e conclui que “muitos dos temas em que os teólogos expressavam de vez em quando em suas discussões do poder salvífico da morte de Cristo vinham da vida litúrgica e sacramental da Igreja”²⁸.
Esta convicção também derruba a divisão (também dualista) entre natural e sobrenatural. Smith afirma que “a humanidade foi criada com um desejo natural pelo sobrenatural, e as operações sobrenaturais da graça nos capacitam a realizar os propósitos naturais para os quais fomos criados”²⁹. Isto significa dizer que Deus nos encontra e nos transforma naquilo que é ordinário, ou seja, na maneira como ele ordenou nas Escrituras. Quando caímos no discurso sedutor da inovação e esperamos a próxima manifestação do Espírito Santo de modo estritamente extraordinário, não percebemos Deus onde ele prometeu estar sempre: “na Palavra, e na Mesa”. A igreja é importante “não porque o edifício tenha alguma mágica supersticiosa, mas porque ela é o Corpo de Cristo”, onde o Espírito age “por meio dos cânticos, das ofertas, das pregações, do Batismo e Ceia”. A igreja é importante pois, por meio dessas práticas, ela “encarna” a narrativa do Evangelho³⁰. E sem dúvida tem-se um contraste importante aos modelos que buscam ser “autênticos” ou “trazer o Céu para Terra”, como a adoração espontânea, em que existe o estímulo a novas práticas para tornar da presença de Deus manifesta na “atmosfera de adoração”. Não precisamos “inovar” se Deus já nos disse como ele estaria conosco. E é na repetição desses meios que ampliamos nossa percepção de sua presença³¹. Cair no equívoco da inovação constante é correr insistentemente o risco de destruir uma vez após outra as bases da nossa formação espiritual.
A natureza da Liturgia de repetição e imitação é importante não pela repetição em si mesma, mas porque no culto existe um redirecionamento — ou na linguagem de Smith, um recalibrar — dos nossos corações a Deus. Isto é necessário pois, fora do ambiente de culto, os ídolos do nosso tempo tentam direcionar nossos corações a eles o tempo todo, por meio de narrativas e práticas próprias. Um exemplo disso é o processo de midiatização, mencionado no texto anterior desta série, que é a expansão da linguagem e práticas das mídias digitais para outras áreas da vida, a ponto de redefinir como o mundo real se comportaria a partir do que acontece no digital. Nossos corações são recalibrados no culto porque este momento não se trata apenas da entrega de nossa devoção a Deus, antes, por ele já ter prometido nas Escrituras que agiria nos elementos do culto, Deus é o ser primariamente ativo no momento de adoração da igreja, onde ele nos encontra, e a ação do Espírito no culto tem efeito duplo: enquanto percebemos mais a presença e ação de Deus no cotidiano, no ordinário, também percebemos a ação cotidiana de falsos deuses no esforço de dominar nossos corações³². Smith defende que “a Igreja [ecclesia] como a comunidade da fé que recebeu a revelação da Palavra, precisa ver o mundo de maneira distinta daquela dos pagãos”³³. Smith chama essa perspectiva de culto de adoração formativa, em virtude dessa característica formativa da Liturgia (mais especificamente, aquela que é embebida na narrativa do Evangelho em diálogo com a adoração cristã histórica)³⁴. Ele resume da seguinte forma:
A adoração cristã histórica tem um arco narrativo que ensaia a história de redenção na própria forma de adoração — encenando a “verdadeira história do mundo inteiro”. E o faz de uma maneira que fala na linguagem da imaginação, a parte de nós que entende por narrativas. A liturgia intencional e histórica restaura nossa imaginação porque santifica nossa percepção — implanta a história bíblica tão profundamente em nossa pré-consciência que o evangelho se torna o “pano de fundo” contra o qual percebemos o mundo, mesmo sem “pensar” nele. Somente quando você é formado profundamente disso, você pode dizer, como C. S. Lewis, “eu acredito no cristianismo como acredito que o sol nasceu: não apenas porque eu o vejo, mas porque através dele eu vejo tudo ao meu redor”. Esta é uma “crença” que você carrega em seus ossos³⁵.
Culto e engajamento social
Embora o sentido de liturgia seja normalmente restringido apenas ao contexto dos cultos dominicais, Graham Ward, professor da Universidade de Cambridge (e que contribuiu na formação da Ortodoxia Radical), explica que a palavra liturgia teria um sentido mais amplo: “o termo grego leitourgia, do qual liturgia é derivado, era um termo técnico da política, para um serviço prestado à cidade ou ao Estado; […] é um trabalho ou um labor (ergon) com respeito às pessoas ou comunidade (leitos)”³⁶. Ward acredita, então, que liturgia é um “serviço público” realizado em favor de alguma comunidade. Sendo assim, a OR vê a Igreja como o espaço prioritário (e privilegiado) para a formação cristã não apenas no sentido “espiritual”, mas também para a outras áreas da vida, incluindo a política³⁷. Smith oferece o exemplo da aplicação política da Ceia: no ato em que participamos do corpo e do sangue do Senhor, reafirmamos que Jesus comprou para si “os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação” (Apocalipse 5:9 — ARA). Isto implica também em afirmar que crer em Jesus como Senhor é um imperativo para a solidariedade sem “fazer acepção de pessoas” (Tiago 2:9 — ARA) em virtude de origens étnicas, sociais, econômicas, etc., como também é uma afirmação de que nossa lealdade a Cristo é superior aos nossos comprometimentos políticos com nossa nação, classe, ou pautas políticas³⁸. Em outras palavras, o que para nós pode parecer um simples rito religioso, é na verdade um fundamento da formação cristã para resistir à toda tentativa de assimilação do Evangelho e da Igreja de Cristo a projetos políticos originados em qualquer um dos espectros políticos³⁹.
Partindo dessa visão presente na OR e em James K. A. Smith (como também nos estudos sobre liturgia na tradição reformada), Pedro Dulci, em Fé Cristã e Ação Política: A Relevância Pública da Espiritualidade Cristã, define a luta cristã por transformação social como uma militância eclesiocêntrica. Isto significa reafirmar o que acabamos de demonstrar: a igreja (ecclesia) deve ser o centro da formação cristã para a ação política. A igreja, em sua liturgia, cumpre o papel de “incubadora de virtudes”, que são necessárias para que tenhamos “indivíduos formados com as virtudes necessárias para uma vida pública vigorosa”⁴⁰. Para ilustrar isso, além do exemplo da Ceia demonstrado acima quando citamos Smith, podemos citar também Nicholas Wolterstorff quando afirma que “a luta pela justiça é a luta pela encarnação da santidade no mundo. A liturgia autêntica nos confronta com Deus, aqui e agora, dizendo-nos: buscai a justiça”⁴¹. Esta posição contrapõe-se à Teologia dos 7 Montes, que em virtude de sua premissa pessimista em relação à Teologia — chamando a discussão teológica até de “obra do Diabo” — termina por rejeitar a reflexão teológica como elemento necessário para a formação cristã, e não apenas no sentido “formal” de estudar em seminários ou cursos teológicos, como também no esvaziamento teológico dos cultos, em busca do que é entendido como uma manifestação mais clara do poder de Deus, por meio de experiências sobrenaturais. A Teologia dos 7 Montes é adotada por igrejas que acreditam ter maior eficácia missionária por adotar um modelo de forte presença digital, seja de conteúdo produzido por essas igrejas em redes sociais, ou na presença do digital nos cultos. O resultado disto é a adoção de um parâmetro de sucesso coerente com o que está presente nas mídias, como também uma tendência a interpretar as Escrituras a partir de ideias presentes nas mídias digitais (como no caso do conceito de “ativação profética”). Já o modelo de adoração formativa, que é inspirado na Ortodoxia Radical, direciona nosso olhar para perceber que os elementos ordinários do culto cristão teologicamente rico pelo diálogo com o passado da Igreja são a base formativa para a ação política dos servos de Deus: “apenas comunidades teologais têm os recursos para resistir ao colapso por ceder à valores pragmáticos e transitórios associados aos ‘estilos de vida’ promovidos pela mídia”⁴². A Igreja se constitui, assim, como uma comunidade política, não porque a Igreja é partidária, mas porque é uma comunidade com recursos para formar seus membros para a vida em sociedade. De acordo com Smith:
A comunidade cristã, portanto, é uma polis [comunidade política] que é caracterizada por (1) uma narrativa específica que é recontada em práticas específicas; (2) um telos [propósito] diferente que transcende a ordem atual; (3) a presença comum do Espírito em ação entre seus membros através da Palavra e do Sacramento⁴³.
O problema da comunicação
“A Tradição é a fé viva dos mortos; o tradicionalismo é a fé morta dos vivos.” (Jaroslav Pelikan)⁴⁴
Em qualquer momento da História, inclusive no período dos apóstolos, a Igreja teve de lidar com o problema da comunicação — como falar de verdades eternas a contextos culturais que são delimitados e, portanto, distintos entre si? Se o problema da Igreja Antiga era a comunicação entre judeus e gentios (resolvida em Atos 15:1–35), temos hoje nossos problemas com a comunicação do Evangelho a gerações cada vez mais imersas no mundo digital. Na tentativa de solucionar esta questão, é comum que as respostas girem em torno dos termos conteúdo e forma. A premissa é simples: o conteúdo, que é o Evangelho, é imutável, enquanto a forma em que este é comunicado depende de cada contexto cultural. Entretanto, existe um problema no binômio conteúdo-forma: enquanto “conteúdo” tem um significado seguramente estabelecido (o Evangelho), existe questionamento sobre o que seria a “forma”. Em resumo, enquanto uns diriam que uma “forma contemporânea” traz mais sucesso em atrair pessoas para as igrejas, outros apelariam para uma “forma histórica” por conta da estabilidade que a adesão a modelos tradicionais oferece.
James K. A. Smith oferece mais um elemento para pensarmos sobre a comunicação do Evangelho hoje: além de conteúdo e forma, cristãos também deveriam se preocupar com estilo. Este terceiro elemento é adicionado por Smith porque, quando se pensa apenas em termos de conteúdo-forma, é frequente que muitas soluções para o problema da comunicação sejam baseadas em modelos que enfatizam apenas o que se sente ser melhor para o momento (que por isso Smith chama de expressivistas), ou soluções nostálgicas, que tendem ao tradicionalismo por conta de uma visão saudosista dos líderes de uma determinada igreja. Assim, para entender como o tripé conteúdo-forma-estilo funciona, é preciso olhar com mais cuidado sobre como se define o que é forma. E Smith tem uma proposta interessante:
Por forma de culto, quero dizer duas coisas: (1) o arco narrativo geral do culto e adoração cristã e (2) as práticas concretas recebidas que constituem elementos dessa narrativa proclamada. A adoração cristã formativa tem uma forma intencional e bíblica, como um nexo de práticas que recalibram nossos corações para com Deus e seu reino⁴⁵.
Esta forma é fruto da riqueza presente nas práticas litúrgicas ao longo da História da Igreja. Smith acredita que é possível esse diálogo com o passado cristão para repensarmos nosso culto hoje, porque Jesus prometeu que o Espírito Santo nos guiaria a toda verdade (João 16:13). Estas verdades, contudo, não se resumem apenas a “princípios doutrinais” — especialmente a partir de uma visão racionalista da doutrina — mas também à práticas corretamente estabelecidas pela Igreja ao longo dos séculos⁴⁶. De modo mais específico, Smith afirma que a forma histórica do culto é composta de quatro etapas:
1) Chamada: o momento de início do culto é um chamado à adoração, em “que o povo de Deus se ajunta lembrando que ele é o iniciador, fazendo ecoar o momento em que o próprio Deus nos chamou à existência”⁴⁷. É o momento de louvor e confissão da igreja.
2) Palavra: o sermão não é um momento para obter “princípios” para aplicarmos em nossas vidas. Por mais que a pregação do Evangelho ofereça isso, essa afirmação é reducionista. Na Palavra, vemos como Deus nos insere em sua história, por fazermos parte do povo de Deus hoje. A Palavra é central porque Cristo, o Verbo Vivo, é o centro dessa história. A Igreja Antiga, também a partir da doutrina do Verbo Encarnado, fornece elementos para percebermos a importância da Palavra, por sua visão de que “Cristo era o pregador de Deus. Isso sugere o ensinamento de que Cristo, a Palavra pessoal, por intermédio de sua presença na palavra pregada deu instrução para a Igreja e conferiu-lhe o poder para acreditar nessa instrução e obedecer a ela”⁴⁸.
3) Comunhão: participar da Ceia é reforçar nossa comunhão com o próprio Deus e com os irmãos das nossas comunidades locais, mas também é participar da comunhão com irmãos que fazem parte do Corpo de Cristo hoje ao redor do mundo, como também com os irmãos do passado. Somos “rodeados por uma grande nuvem de testemunhas” (Hebreus 12:1), daqueles que viveram e vivem aguardando a restauração de todas as coisas e a celebração do grande banquete do qual a Ceia é uma antecipação. Smith tem uma perspectiva interessante sobre o hábito de recitar o Credo Apostólico após a Ceia: segundo ele, a Ceia “é o rito cívico de uma outra cidade — a Cidade Celestial — que inclui nosso juramento de fidelidade, o Credo”⁴⁹.
4) Envio: a bênção ao final do culto não é apenas um momento de despedida formal — ela é a reafirmação de que o Espírito Santo capacita e sustenta aqueles que foram chamados por Deus, receberam a Palavra e reafirmaram sua comunhão com Deus e seu povo para ir ao mundo e oferecer aos perdidos testemunho do Reino de Cristo a partir de uma presença fiel, ou seja, servos de Deus agindo em todas as esferas a partir do que já receberam em Cristo e conscientes do que ainda irão receber.
A importância da forma histórica do culto se dá pela sua natureza católica, “não porque ela é ‘romana’, mas porque o repertório da adoração cristã histórica representa a sabedoria acumulada pelo Corpo de Cristo”, ao longo de toda História. Smith continua: “podemos encontrar dádivas naquilo que o Espírito já entregou à Igreja, recebendo como herança e contextualizando fielmente a sabedoria acumulada da adoração cristã”⁵⁰. Essa preocupação de Smith reflete o que foi escrito por Vicente de Lérins (?-450), em Commonitorium, por volta do ano de 434:
Na própria Igreja Católica, deve-se tomar um cuidado especial para mantermos o que se acredita em todos os lugares, em todos os tempos e por todos os homens. Pois isso é verdadeira e corretamente “católico”, como mostra a própria etimologia da palavra, que inclui quase tudo universalmente. Este resultado será alcançado se seguirmos a ecumenicidade, a antiguidade e o consenso.⁵¹
Kenneth Stewart explica que, em Vicente de Lérins, os critérios da catolicidade — ecumenicidade (“o que se acredita em todos os lugares”), antiguidade (“o que se acredita […] em todos os tempos”) e consenso (“o que se acredita […] por todos os homens”) — não resultam em uniformidade. O próprio Vicente deseja “o progresso, não a alteração da fé”⁵², e este progresso, que é a expansão das doutrinas católicas ou elaborações sobre elas, deveria estar em conformidade, acima de tudo, com as Escrituras, para a manutenção da unidade⁵³. Justo González afirma que a ortodoxia (sinônimo para catolicidade) não era uniforme, pois já na Igreja Antiga existiam, pelo menos, três grandes centros de produção teológica: Cartago, Alexandria e Antioquia. Cada um com seus representantes e características, mas sem jamais romper com os limites da unidade, ou seja, da ortodoxia⁵⁴.
Exatamente por isso que o tradicionalismo das soluções nostálgicas não pode ser uma opção para responder às demandas do presente. Pois além do fato de que respostas saudosistas “sacramentam” práticas culturais específicas presentes em diversos modelos de culto — seja, por exemplo, no culto europeu reformado do século 16, no avivalismo americano do século 19 ou no movimento de adoração dos anos 2000 — em nenhum momento da História a Igreja foi uniforme. Crer na unidade do Corpo de Cristo ao longo da História do cristianismo não é o mesmo que acreditar numa ingênua idealização do passado cristão. Mesmo em momentos de crise, como no caso da Reforma Protestante, a influência do humanismo (e de seu subjacente estímulo ao retorno às fontes clássicas) nos reformadores do século 16 fez com que eles “aprendessem a usar a Igreja Antiga para criticar a igreja de seu tempo, e fizeram isso de maneira criteriosa — pois rapidamente aprenderam a admitir que a Igreja Antiga não era unívoca”. Em contrapartida, “a teologia católica parece ter preferido a ideia de que existia um contínuo ininterrupto até o século 16 (uma perspectiva extremamente difícil de ser provada)”⁵⁴. Aqui se percebe a necessidade da distinção entre forma e estilo: um diálogo criterioso e abrangente com o passado cristão identifica uma forma a ser preservada, que pode ser aplicada em diferentes estilos, sejam eles contemporâneos ou tradicionais.
Em termos práticos
Ainda existe um ponto a ser esclarecido, que é a aplicabilidade das ideias da Ortodoxia Radical e da adoração formativa nas igrejas locais. Embora exista concordância sobre o conteúdo do nosso culto, o Evangelho, que é eterno e inalterável, e que o conceito de forma na adoração formativa tenha ficado claro, existe a dúvida sobre como isso seria aplicado a cada estilo. Para iluminar este caminho, podemos citar Kenneth Stewart, quando afirma que este diálogo com o passado cristão deve alcançar três níveis⁵⁶:
1) Nossa congregação e o passado cristão: a construção de uma identidade teológica que dialogue com a teologia histórica e conecte nossas igrejas com as raízes doutrinárias do cristianismo. Isto implica num esforço de investigar a produção teológica dos 1500 anos anteriores à Reforma, que é marcadamente uma deficiência evangélica dos últimos 100 anos — para não mencionar a tendência cada vez maior de ignorar a História da Igreja como um todo.
2) Nossa congregação e a “santa igreja católica”: que práticas litúrgicas das nossas igrejas nos conectam de maneira sólida com o culto dos cristãos do passado? Além da investigação histórica, qualquer adesão às práticas antigas deve ser coerente com princípios bíblicos fundamentais, a fim de que sejamos “católicos” (no sentido já demonstrado aqui e presente, por exemplo, no Credo Apostólico).
3) Nossa congregação e a igreja global: será que aqueles que estão em nossas igrejas compreendem que fazem parte do Corpo de Cristo ao redor do mundo? Ou existe um abismo entre nossa comunidade e outras a ponto de parecer que não existem conexões entre nossa congregação e irmãos de outras tradições? Aqui, Stewart reconhece que o desafio é maior para irmãos de igrejas independentes e pós-denominacionais.
Para que cada um desses níveis seja alcançado, existem ações práticas que cada igreja pode tomar, sempre tendo em mente que isso seja feito “de modo consistente com o seu protestantismo evangélico”⁵⁷. As sugestões a seguir não podem ser tomadas sem o reconhecimento de onde as identidades teológicas das nossas comunidades estão firmadas, pois assim corre-se o risco de cair no tradicionalismo por aderir a soluções nostálgicas.
Antes de tudo, existe um trabalho necessário de conscientização de nossas congregações sobre o legado histórico da Igreja. Por conta de uma tendência para o pragmatismo, adaptação e inovação durante os últimos 100 anos, uma grande parcela dos evangélicos acabaram por cortar suas raízes com o cristianismo antigo em busca de relevância⁵⁸. Como consequência disso, hoje estes defendem doutrinas heréticas combatidas pela Igreja Antiga (como o arianismo, modalismo ou pelagianismo), como demonstra uma pesquisa realizada pela LifeWay Research em 2014. Neste sentido, os espaços de formação teológica das nossas igrejas e especialmente de suas lideranças — como escolas dominicais, cursos bíblicos, workshops, e afins — devem ser lugares em que o legado histórico da Igreja é apresentado aos crentes. Para isso, alguns livros podem ser muito úteis, especialmente por sua capacidade de dialogar com o período anterior à Reforma Protestante, como Bryan Litfin: Conhecendo os Pais da Igreja, Gerald McDermott: Grandes Teólogos, Justo González: Uma Breve História das Doutrinas Cristãs, Mark Noll: Momentos Decisivos na História do Cristianismo, e Nathan Busenitz: Muito Antes de Lutero.
A partir disso, é preciso recuperar os Credos, Regras de Fé e Catecismos para a formação daqueles que frequentam nossas igrejas. O objetivo destes tipos de documentos é triplo: ao mesmo tempo em que sintetizam doutrinas centrais e oferecem um panorama das Escrituras, são ferramentas para evangelização e reafirmação da confiança no Deus que é revelado pela Escritura. Esse movimento já era presente no próprio Novo Testamento, no pequeníssimo resumo da história do Evangelho feito por Paulo em 1 Coríntios 15:3–5, e também nos textos de Romanos 10:9, Filipenses 2:5–11, 2 Timóteo 2:8. Outras Regras de Fé aparecem no Cristianismo Antigo, como aquelas presentes na Carta aos Tralianos (c. 110) de Inácio de Antioquia (?-c. 108), e em Contra as Heresias (c. 184) de Irineu de Lyon (130–202), que enfatizavam as doutrinas da Trindade, da Encarnação e do nascimento virginal de Cristo, sua morte, ressurreição e ascensão, como também o papel do Espírito Santo no chamado e preservação do povo de Deus ao longo da História — doutrinas que são percebidas em declarações mais formais e ortodoxas, como no Credo Apostólico e o Credo Niceno, ambos do século 4⁵⁹. Neste sentido, além da possibilidade de seguir um modelo mais tradicional e recitar o Credo Apostólico após a Ceia, é possível inseri-los na formação de novos membros, especialmente antes (ou após) ao Batismo. Além das Regras de Fé e Credos da Igreja Antiga, é pertinente o diálogo com os catecismos elaborados no período da Reforma. Existem produções contemporâneas dessa síntese de verdades fundamentais da fé, como a Declaração de Cambridge, o Pacto de Lausanne, e o Catecismo Nova Cidade. Como exemplo de uma ferramenta com objetivo evangelístico capaz de “simplificar o complexo”, de modo semelhante às Regras de Fé do cristianismo antigo, Stewart cita o folheto 4 Leis Espirituais da Cru Campus⁶⁰.
Um passo seguinte é repensar a perspectiva existente sobre Batismo e Ceia, especialmente sobre sua importância e regularidade. Isso não significa que é necessária a adesão a uma visão sacramental de ambos. Mas, por exemplo, a partir da percepção presente no movimento evangélico do século 18 que “a Igreja Antiga participava da comunhão semanalmente”, e que portanto este deveria ser o ideal para a igreja do presente⁶¹, deveríamos repensar a frequência em que realizamos a Ceia e seu sentido, algo necessário em tempos que a Ceia é chamada até de “ato profético”. O mesmo vale para o Batismo, que na Igreja Antiga era majoritariamente fruto da ação evangelística da Igreja, simbolizava a “marca” de todo cristão e sua importância era acentuada por ser antecipado (ou sucedido) por formação catequética, baseada em meditações nos Dez Mandamentos, no Pai Nosso e nos Credos (e também nos catecismos, no caso da Reforma)⁶².
Outro passo importante é a reflexão sobre a estética do culto, uma demanda que o movimento da adoração espontânea identifica com precisão. Se o ambiente de culto precisa oferecer uma “preparação” para a experiência do culto, James K. A. Smith afirma que esta preparação deve ser poética: “Uma adoração que molda nossos desejos não é simplesmente didática, ela é poética. Ela pinta um quadro, apresenta metáforas, conta uma história”⁶³. Em outras palavras, no culto não deveria existir uma divisão entre razão e emoção, ambas são necessárias para a formação espiritual.
Dito isso, pensemos no ambiente do culto contemporâneo. Embora uma igreja de “parede preta” não seja em si algo condenável, é válida a crítica que se faz à adoção desse modelo de maneira irrefletida. A saída não está em derrubar todos estes templos e reconstruir igrejas barrocas, mas em perceber como adaptar influências estéticas presentes no passado cristão a estruturas mais contemporâneas — o que tem grande potencial em igrejas que utilizam largamente de recursos visuais nos cultos. Além de uma lista considerável de cristãos que produzem arte contemporânea e movimentos de releituras modernas da iconografia antiga, como a arte Neo-Copta, sites como Art and the Bible e ArtBible são recursos úteis de domínio público para aqueles que trabalham com design e produção de conteúdo visual para o culto conectem a narrativa do Evangelho e o legado da arte produzida pela Igreja para o público contemporâneo.
Quanto à música, é preciso que o louvor de nossas congregações tenha em seu repertório músicas que façam parte do legado musical da igreja. E aqui não se trata de mero “retorno aos hinários”. Por mais que estes façam parte da identidade de muitas denominações e tenham cânticos de excelente qualidade teológica, eles também sofrem pela falta de variedade — grande parte de suas composições são do século 19, de origem inglesa ou americana. Um exemplo disso é o hino Intercessão pela Pátria, que foi composto por Sarah Kalley (1825–1907), cuja melodia é o hino da Inglaterra! Embora cantar o hino da Inglaterra pedindo a bênção divina seja legítimo para ingleses, é estranho ver brasileiros fazendo-o. Isso apenas reforça que soluções nostálgicas terminam por “sacramentar” elementos culturais particulares em outros contextos culturais. Deste modo, dialogar com “a produção musical de todos os lugares, de todos os tempos, e de todos os homens” (parafraseando Vicente de Lérins) é necessário. Além disso, um papel importante da música é na memorização de doutrinas fundamentais presentes nas Escrituras, e na contemplação dessas verdades — que foram defendidas ao longo da História da Igreja. Neste sentido, a playlist The Verses Project serve de inspiração para a memorização de textos bíblicos a partir de gêneros musicais mais contemporâneos, enquanto a playlist Salmodia Brasileira oferece músicas produzidas no contexto nacional; e o álbum Poets and Saints, do grupo All Sons and Daughters, em que as músicas foram escritas a partir da história de santos da Igreja, pode inspirar aqueles que gostariam de compor baseados no testemunho dos irmãos do passado.
Esta estética presente no templo e nas músicas precisa estar conectada às Escrituras. Para isso, o Lecionário é uma ferramenta fundamental: ao conectar leituras bíblicas diárias de textos do Antigo Testamento, do Novo Testamento e dos Salmos com o Calendário Litúrgico (que é baseado nas etapas da vida de Jesus). O Lecionário oferece um panorama das Escrituras e de como elas apontam para Cristo, desde Gênesis até Apocalipse, a partir de diversas temáticas extraídas da própria vida de Jesus, conforme o relato dos Evangelhos. E como o Calendário Litúrgico é dividido em estações, cada uma com suas temáticas e cores próprias, isto serve de inspiração para as escolhas estéticas dos recursos visuais e das músicas a serem tocadas no culto — fornecendo uma experiência de culto integral, em que cada ato importa. No site do Lecionário existem referências a sites e projetos que servem de inspiração para uma conexão teológica e estética de cada ato do culto.
Todo este percurso precisa ser realizado, como foi dito, tendo no horizonte os limites de nossas identidades teológicas. Sabendo que a Igreja nunca foi uniforme, é possível dialogar de maneira proveitosa com o passado cristão para responder às demandas do mundo atual. Além disso, como diz o ditado, “Roma não foi construída em um dia”, e construir essa ponte entre a identidade de nossas congregações e irmãos “de todos os lugares, e todos os tempos” exige esforço e aperfeiçoamento contínuo. Entretanto, este esforço nos torna capazes de reconhecer que não temos nada além daquilo que recebemos (1 Coríntios 4:7), e qualquer tentativa de comunicar o Evangelho a novas gerações deve levar em conta aquilo que herdamos da “grande nuvem de testemunhas” (Hebreus 12:1) de irmãos do passado. A partir do momento em que acreditamos ser melhor rejeitar este legado para obter mais resultados, terminamos por fundamentar nosso sucesso em bases que são estranhas ao Evangelho e ao testemunho de tantos irmãos ao longo da História. Precisamos lembrar que a igreja não foi chamada para dar resultado, mas para obedecer — e nisto precisamos cuidar para que não corrompamos as bases que sustentam nossa obediência, como já nos foi avisado: “Não removas os marcos antigos que puseram teus pais” (Provérbios 22:28 — NAA).
Notas
1^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots — The Christian Past and the Evangelical Identity Crisis. IVP Academic, 2017. p. 273.
2^ Cf. Kevin Vanhoozer (org.): The Cambridge Companion to Postmodern Theology. Cambridge University Press, 2003.
3^ D. Stephen Long: Radical Orthodoxy. Em Kevin Vanhoozer: The Cambridge Companion to Postmodern Theology. p. 126; James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy — Mapping a Post-Secular Theology. Baker Academic, 2004. p. 33.
4^ D. Stephen Long: Radical Orthodoxy. p. 135.
5^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 180–181.
6^ James K. A. Smith: You Are What You Love — The Spiritual Power of Habit. Brazos Press, 2016. p. 72 [tradução em português: Você é Aquilo que Ama. Vida Nova, 2017].
7^ John Milbank: The Programme of Radical Orthodoxy. p. 45. Em Laurence Paul Hemming (org.): Radical Orthodoxy? A Catholic Enquiry. Ashgate, 2000. Citado em James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 65.
8^ D. Stephen Long: Radical Orthodoxy. p. 127.
9^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 46, 64.
10^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 3–4, 13, 73.
11^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 70.
12^ D. Stephen Long: Radical Orthodoxy. p. 131.
13^ D. Stephen Long: Radical Orthodoxy. p. 131–133.
14^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 191–192.
15^ D. Stephen Long: Radical Orthodoxy. p. 129–131.
16^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 78–80.
17^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 126.
18^ D. Stephen Long: Radical Orthodoxy. p. 134.
19^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 68.
20^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 26.
21^ Evidência disso é o período do Grande Despertar (1730–1750), na Nova Inglaterra. Momento conhecido como o “Primeiro Grande Avivamento”, o movimento liderado por George Whitefield, Gilbert Tennent, Jonathan Edwards e John Wesley, iniciou a partir de críticas ao racionalismo teológico presente nas igrejas das colônias inglesas na América. Cf. Gerald McDermott: Jonathan Edwards Confronts the Gods — Christian Theology, Enlightenment Religion and Non-Christian Faiths. Oxford University Press, 2000; Harry Stout: The New England Soul — Preaching and Religious Culture in Colonial New England. Oxford University Press, 2ª Edição: 2011. Mark Noll: The Rise of Evangelicalism — The Age of Edwards, Whitefield and the Wesleys. IVP Academic, 2003; Patricia Bonomi: Under the Cope of Heaven — Religion, Society and Politics in Colonial America. Oxford University Press, 2ª Edição: 2003.
22^ D. Stephen Long: Radical Orthodoxy. p. 139.
23^ Agostinho: Confessions. Christian Classics Ethereal Library. p. 26.
24^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 16.
25^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 16.
26^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 224; You Are What You Love. p. 26, 69.
27^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 232
28^ Jaroslav Pelikan: A Tradição Cristã — Uma História do Desenvolvimento da Doutrina. vol. I. Shedd Publicações, 2014. p. 157–163.
29^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 70.
30^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 56–57, 63; Introducing Radical Orthodoxy, p. 180–181, 238.
31^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 21.
32^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 59–68; Introducing Radical Orthodoxy, p. 77.
33^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy, p. 51.
34^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 67.
35^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 76. Smith cita o título de Michael W. Goheen e Craig Bartholomew: The True Story of the Whole World: Finding Your Place in the Biblical Drama. Faith Alive, 2009; e C. S. Lewis: They Asked for a Paper. Em Is Theology Poetry? Geoffrey Bless, 1962. p. 164– 65.
36^ Graham Ward: Politics of Discipleship — Becoming Postmaterial Citizens. Baker Academic, 2009. p. 182. Citado em Pedro Dulci: Fé Cristã e Ação Política — A Relevância Pública da Espiritualidade Cristã. Ultimato, 2018. p. 57.
37^ D. Stephen Long: Radical Orthodoxy. p. 144.
38^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy. p. 238.
39^ Além do já citado Fé Cristã e Ação Política do Pedro Dulci, outra leitura indispensável neste quesito é David Koyzis: Visões e Ilusões Políticas — Uma Análise e Crítica Cristã das Ideologias Contemporâneas. Vida Nova, 2014.
40^ Pedro Dulci: Fé Cristã e Ação Política. p. 125.
41^ Nicholas Wolterstorff: Liturgia Reformada. Em Donald K. McKim: Grandes Temas da Tradição Reformada. Associação Evangélica Literária Pendão Real, 1995. 234–235. Citado em Pedro Dulci: Fé Cristã e Ação Política. p. 149.
42^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy, p. 167.
43^ James K. A. Smith: Introducing Radical Orthodoxy, p. 239.
44^ Jaroslav Pelikan: The Vindication of Tradition — 1983 Jefferson Lecture in the Humanities. Yale University Press, 1984. p. 65.
45^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 65.
46^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 66.
47^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 78.
48^ Jaroslav Pelikan: A Tradição Cristã — Uma História do Desenvolvimento da Doutrina. vol. I. Shedd Publicações, 2014. p. 174.
49^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 79.
50^ James K. A. Smith: You Are What You Love. p. 66–67, 73.
51^ Vicente de Lérins: The Commonitory. Em Early Medieval Theology, editado e traduzido por George McCracken e Alan Cabaniss. Londres, 1957. 2:3. Citado em Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 60.
52^ Vicente de Lérins: The Commonitory. 23:28, 69. Citado em Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 60–61.
53^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 61.
54^ Justo González: Retorno à História do Pensamento Cristão. Hagnos, 2011. p. 23–39.
55^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 85.
56^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 270–273.
57^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 270.
58^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 268.
59^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 50–51.
60^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 53.
61^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 122–124.
62^ Kenneth Stewart: In Search of Ancient Roots. p. 139, 271–272.
63^ James Smith: You Are What You Love. p. 86.