Política: entre a História e o Mito
Um olhar histórico e teológico sobre como políticos se tornam mitos
Pouco antes da COVID-19 chegar com força no Brasil e se iniciarem as políticas de isolamento, eu estava na recepção de calouros da UFF com a Cru Campus. Enquanto falávamos com os novos estudantes sobre a vida universitária e como o Evangelho tem a ver com isso, um grupo de senhoras que fazia sua caminhada matinal pelo campus da Educação Física passou por nós e, uma delas, Ana, perguntou o que fazíamos lá. Depois da conversa, pediu que orássemos por ela.
Enquanto andava pela universidade depois de reabastecer minha garrafa d’água, encontrei Ana novamente. Ela disse que gostava de contar anedotas (ela não contava piadas pois, segundo ela, tinham um tom sexual reprovável), e parei para ouvir algumas. Depois de umas risadas genuínas e uns risos amarelos, ela me perguntou:
- Você é estudante da UFF?
- Sim. Estudo História.
Depois de ouvir minha resposta, ela fez uma longa pausa. Respirou fundo e se dirigiu a mim num misto de desabafo, repreensão e lamento:
- Já que você é de História… Deve ter ouvido falar de Getúlio, né? Um homem que fez tanto pelo povo, acabou se matando. É isso que a História diz… Mas será mesmo? Você acredita que um homem daquele foi capaz de tirar a própria vida?
Você é jovem e não viu tanta coisa como eu vi… Eu tenho certeza que ele não se matou. Logo ele, que era o Pai dos Pobres! Não, ele não cometeu suicídio: aquela carta foi forjada e mataram ele, ou melhor, o forçaram a se matar. O sistema não gostava dele, porque era o Pai dos Pobres.
Você deve ver muito estudo e argumento por aí, mas não acredita nisso. Eu vivi aquela época e vi como Getúlio era. Um homem tão bom não daria um tiro nele mesmo por vontade própria.
Vendo o tanto que ela ficou emocionada ao falar sobre Getúlio, tentei mudar de assunto:
- É, tem gente que acredita que ele se matou mesmo. Mas isso é conversa para mais de hora. Mas, diz aí, dona Ana: como a senhora passou a gostar de anedotas?
Fiz isso porque, penso eu, ela não estava no momento para saber que Getúlio Vargas fez coisas que o Pai dos Pobres jamais faria.
Enquanto voltava para casa, essa situação me lembrou de outro caso.
Estava numa aula de História Contemporânea sobre Revolução Russa (um tema nada polêmico, para não dizer o contrário). Em certo momento, a professora mencionou as crises de fome que assolaram os russos no início dos sovietes. Então, quando passou a explicar o momento no qual Lênin ordenou que o alimento da dispensa de camponeses fosse redirecionado à Moscou, um aluno ergueu a voz:
- Não, professora! Lênin não faria uma malvadeza dessas!
Este também não estava pronto para saber que Vladimir Ilyich Ulianov fez coisas que o Lênin jamais faria.
Estes são exemplos de reação evidenciando que a Política já ultrapassou a fonteira da História, e agora habita na esfera do Mito. Acredito também que esta reação é comum a todos que se identificam com ideias políticas personalistas (que parecem ser recorrentes na América Latina): o getulismo, o peronismo, o castrismo, o chavismo, o lulismo e, também, o fenômeno recente do bolsonarismo.
Quando digo que todos esses movimentos políticos se relacionam ao Mito, não parto da visão comum que os mitos seriam alguma explicação fantasiosa para fenômenos que seriam conhecidos em sua verdadeira natureza se abandonássemos o Mito e seguíssemos fielmente a Ciência (no caso da Política, as Ciências Humanas). Quando penso no Mito como uma categoria, penso numa narrativa-mestra, que transcende o nosso tempo e espaço, e oferece a explicação em nível último sobre um aspecto da realidade ou a realidade em si. Nesse sentido, por exemplo, eu creio que o texto bíblico de Gênesis 1–2 seja um Mito, porque ao dizer que Deus “fez cada um de acordo com sua espécie e viu que tudo era bom”, o objetivo do texto é informar aos seus leitores o propósito e o ordenamento do mundo criado.
Quando tratamos de movimentos políticos personalistas, eles se tornam, a meu ver, exemplos claros de como o Mito ainda é presente neste mundo secular e moderno. Ao lado de um pragmatismo extremo que explica a escolha de uma figura política específica, surge um irracionalismo raivoso, que entende (e defende efusivamente) que toda a ordem da Política, como uma esfera da existência humana, deve ser explicada e entendida a partir de um agente político determinado e tudo que acontece ao seu redor — “ao redor” não apenas pelo contexto histórico-social mais amplo do qual este agente faz parte, mas, fundamentalmente, porque o agente político em questão se tornou o centro de todo sentido e organização da vida social.
Esse é um daqueles casos nas Ciências Humanas em que é difícil descrever o mecanismo que faz a Política cruzar a fronteira da História para o Mito. Você só percebe quando já aconteceu.
Para ilustrar isso, tomemos como exemplo Jair Messias Bolsonaro.
Aos olhos da História, Bolsonaro foi deputado federal por 27 anos. Apesar da longa carreira no Congresso, ficou conhecido por defender causas um tanto quanto exóticas (como o fim da importação de bananas do Equador) e pelas declarações bastante conhecidas de apoio à ditadura, tortura, e o tom deveras preconceituoso em sua luta contra o avanço da dita agenda de esquerda com pautas progressistas e “gayzistas”, reafirmando seu compromisso com as tais “pautas cristãs”; apesar de nunca ter demonstrado arrependimento por declarações e ações totalmente contrárias ao que ramos históricos do cristianismo acreditam ser fundamental (para não mencionar o constante uso de uma interpretação descontextualizada do texto de João 8:32).
Desde o início de sua campanha para concorrer à presidência, a fim de manifestar afirmativamente seu vínculo com o cristianismo, Bolsonaro, o cristão católico em seu 3º casamento, teve batismo evangélico no Rio Jordão e se (re)converteu inúmeras vezes — a última, até o momento, no The Send, em Brasília — mas também foi visto participando de rituais xintoístas para “se livrar do mal”.
Além disso, outra bandeira de campanha, a luta contra a corrupção, se dissolve diante de negociações e entrega de cargos a figuras investigadas pela Lava-Jato e Mensalão, com nomes conhecidos como Roberto Jefferson, Valdemar da Costa Neto e Gilberto Kassab; negociações que são fruto de sua inaptidão em lidar com articulação política e com as tecnicalidades da vida pública (que fique claro: articulação política é algo bem distante das negociatas e acordos espúrios que de longa data ocorrem no Brasil). E falando em questões técnicas, outra pauta de campanha de Bolsonaro, parece que os critérios “técnicos” cruciais para indicar e/ou manter pessoas em seus cargos é ser aluno de Olavo de Carvalho e/ou ser amigo da família Bolsonaro, (para não mencionar quando quis indicar o filho para a embaixada americana) o que parece um contrassenso com sua afirmação de fazer “nova política”. Soma-se a isso um político que foi deputado por 27 anos, mas, ataca com frequência os outros poderes e instituições da República, como também a estrutura democrática que o levou à presidência, e na maioria das vezes se mostra silente quando seus apoiadores defendem o fim dessa mesma estrutura. E como se não bastasse, Bolsonaro insiste em relativizar os efeitos da crise sanitária causada pela Covid-19.
Contudo, Jair Messias Bolsonaro é bem diferente do Mito.
O Mito é patriota, pois, sendo militar, entende que precisamos superar as divergências e nos unirmos pelo Brasil. Por isso seu mote: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O Mito respeita as raízes cristãs do Brasil, cita a Bíblia e convoca jejum, a exemplos dos reis do Antigo Testamento. Além disso, o Mito tem o sobrenome Messias: um indicador profético do futuro de prosperidade da nossa nação. O Mito, portanto, é o ungido de Deus como Davi, é enviado de Deus, como foi Ciro, é um profeta, e conta com um exército que clama a Deus para que ele destrua o trono de iniquidade que imperava neste país, e vença seu maior inimigo para reerguer o Brasil e restabeleça a verdade, pois a verdade do Mito é a que liberta.
E qual é o maior inimigo do Mito? Aliás, o Mito tem muitos. Sua luta é contra a Mídia, o Petismo, o Esquerdismo, o Comunismo, o Progressismo, o Racialismo, o Politicamente Correto, o Gayzismo, a Ideologia de Gênero, a Maçonaria, o Imigracionismo, o Climatismo, o Ambientalismo, o Globalismo. Todos esses inimigos se articulam num enorme Sistema, contra o qual o Mito luta sozinho (a propósito, o Mito nunca erra, as possíveis falhas são sempre conjugadas na voz passiva; ele não se engana, ele é enganado). O Mito está cercado por uma corja de traidores e egoístas, inimigos da nação, que só pensam em usurpar seu poder legítimo garantido nas eleições: se o Mito é o Capitão da nação, é preciso respeitar a hierarquia! O Mito é o líder natural e predestinado da Revolução Brasileira — uma revolução nacionalista necessária, pois o Mito é a encarnação da própria Constituição, ele coordena de maneira fiel e patriota o funcionamento do país; elemento fundamental para evitar que o Brasil caia numa ditadura comunista-globalista chinesa sustentada no projeto que criou o “comunavírus”.
Como sabemos que Jair Bolsonaro cruzou a linha que separa a História do Mito? Sabendo a diferença entre os dois campos. A diferença, portanto, que define a fronteira entre a História e o Mito é que a História procura lembrar daquilo que o Mito quer esquecer.
O que leva pessoas a agirem dessa forma, enxergando o mundo (ou mais especificamente, a Política) através dessa idealização de uma figura política? Como disse acima, as Ciências Humanas parecem não oferecer uma resposta muito conclusiva, pois geralmente se percebe esse fenômeno quando a fonteira entre a História e o Mito foi cruzada, sem muitas explicações definitivas de como isso acontece. Alguém poderia argumentar, por exemplo, que a noção marxista de ideologia poderia ser aplicada aqui. Embora ela consiga alguns méritos na questão, se perderia o aspecto fundamental: este tipo de celebração cultual de um líder político, com histórias e narrativas proféticas sobre sua trajetória no poder e sobre o futuro da nação, somadas à representações diabólicas do inimigo, se configuram um estado espiritual. Nenhum conceito naturalista ou materialista seria capaz de dar conta disso.
Agora, voltemos nosso olhar para a Teologia. Acredito que a categoria bíblica de idolatria é a que melhor explica como políticos se tornam mitos. Aqui, reconheço que o conceito tem sofrido abusos e seu significado bastante reduzido. Por isso, quero apresentar o texto bíblico que, ao meu ver, melhor resume o que seria idolatria:
Os ídolos das nações são prata e ouro, obra de mãos humanas.
Têm boca e não falam; têm olhos e não veem;
têm ouvidos e não ouvem; têm nariz e não cheiram;
têm mãos e não apalpam; têm pés e não andam; som nenhum lhes sai da garganta.
Tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e todos os que neles confiam.
(Salmos 115:4–8)
O primeiro ponto é que ídolos são criados pelos homens a partir do que valorizam. Isto está baseado na imagem que os ídolos são “prata e ouro”. É evidente que as estátuas de deuses no mundo antigo não eram apenas de materiais preciosos. Ao ressaltar a imagem de prata e ouro, o salmista segue um caminho semelhante à declaração de Jesus: “onde estiver o seu tesouro, aí está o seu coração” (Mateus 6:21).
Em outro texto, menciono Agostinho de Hipona, quando ele define o que chama de Ordem dos Amores. Ele afirma que todo ser humano busca o Sumo Bem, e este, a fonte de todo sentido, é seu objeto de amor e lealdade últimas — e todo o restante do mundo observável (ou, melhor, nossos outros amores) se organizam em torno de nosso amor último. Neste mesmo texto, aponto que na campanha para a presidência, Bolsonaro já utilizava dois elementos centrais para que ele se tornasse Mito: um sentimento nacionalista inspirado pela menção ao Brasil e o uso do cristianismo como recursos retóricos de agregação.
No cenário do Brasil, as mídias sociais serviram para a percepção do crescimento de uma esquerda distinta do marxismo já presente no país. Essa “nova-esquerda”, que por beber de fontes ligadas aos estudos pós-coloniais, decoloniais e afins se posicionou de maneira vigorosa contra um ufanismo que teve seus ápices na Ditadura Getulista e na Ditadura Militar e contra o cristianismo católico presente como elemento fundamental de coesão social desde antes da fundação do Brasil em 1822, como também o cristianismo evangélico, surgido em momento posterior. Independentemente dos méritos dessas críticas, para aqueles apegados ao ufanismo e ao cristianismo (ou, melhor, a algumas noções éticas de inspiração cristã), era difícil ver esses valores que amavam serem deslegitimados. Bolsonaro, então, aparece como um representante na defesa desses valores, trazendo esperança para um mundo que parecia ruir.
Se atentarmos para a segunda afirmação do salmo 115, a de que ídolos tem “boca, olhos, ouvidos, nariz mãos, pés, e garganta”, perceberemos que o foco do salmista é afirmar que nós temos ídolos porque vemos neles elementos de afirmação da nossa plenitude humana. Os ídolos têm o aparato que permite utilizar os cinco sentidos, se mover e falar. Em outras palavras, temos ídolos porque vemos neles não apenas aquilo que mais valorizamos, mas vemos que o objeto de nosso amor último pode se mover à frente para nos guiar, pode vir até nós para nos ver, ouvir e falar conosco. O bolsonarismo surge quando o Jair se tornou a encarnação de valores que estavam em descrédito — o Brasil e a fé cristã (ou, mais precisamente, de como os bolsonaristas entendem isso).
E nisto está lançada a maldição dos ídolos: “tornem-se semelhantes a eles os que os fazem e todos os que neles confiam”. Os ídolos são obra de mãos humanas, mas o homens dependem dos ídolos porque estes encarnam seus amores últimos. Em termos práticos, isso significa que Bolsonaro é como um político qualquer, chegou onde está por obra das mãos de seus eleitores. Como um político qualquer, espera-se fiscalização e crítica de seu trabalho. Mas como ele se tornou um ídolo, seus seguidores, acometidos pela maldição da idolatria, veem aquilo que o Mito vê, seus ouvidos ouvem aquilo que o Mito ouve, e falam o que sai da garganta do Mito.
Alguém pode perguntar: e quando a realidade bater à porta? Quando descobrirem que a realidade da Política, como uma esfera da existência humana, é mais complexa que a narrativa do Mito? E quando eles perceberam que o Mito “tem olhos, mas não vê”?
Bem, se seguirmos o conceito bíblico de idolatria, isso é impossível. Pois, ao guiar-se pela narrativa do Mito, o idólatra já se tornou como o ídolo. Como o objeto de nosso amor último organiza as coisas que o rodeiam, para o idólatra, sua segurança e sentido estão no ídolo, a realidade é o ídolo — e o Mito é a narrativa que sustenta essa crença. Aqui, já ultrapassamos a fronteira da racionalidade, é um compromisso existencial; o idólatra (no nosso caso) crê que seu ídolo é mais capaz de significar a esfera da Política que o próprio Deus que a criou. Por essa natureza espiritual, o idólatra, ainda que se declare cristão, precisa ser evangelizado. A única saída é a destruição do ídolo pelo “martelo que esmiúça a penha” (Jeremias 23:29).