Protestos no Rio de Janeiro, em 2013 (fonte: EBC)

Servindo a dois senhores?

O cristão entre as devoções políticas

Leonardo Cruz

--

Não é de hoje que política é um assunto quente no Brasil. Desde as manifestações de 2013, pelo menos, o cotidiano do brasileiro passou a ser marcado por discussões ideológicas, intensificadas pelo processo que levou ao golpe/impeachment de Dilma Rousseff. Sobre este crescimento do interesse no debate político nacional, há quem diga que a discussão política é infantilizada, o que seria dizer que não há, de fato, discussão alguma — o debate saudável foi substituído por uma briga de heróis e vilões, por um embate excessivamente emotivo. Mas de onde viria essa “subversão emotiva” da política?

Nas entrelinhas

Aqui no Rio de Janeiro, um dos candidatos a governador é o Tarcísio Motta, do PSOL. Na sua campanha online, Tarcísio tenta mostrar que consegue ser um candidato que preza por um dos princípios mais básicos da democracia: a representatividade. Para tanto, ele disponibiliza em sua página no Facebook um álbum com 155 identidades distintas que seriam representadas por ele¹. A ideia é bem simples: o eleitor deve escolher a imagem com a identidade que lhe define e compartilhar, o que indica àqueles que verão a publicação em seu mural que se eu sou X, logo a melhor opção é Tarcísio.

Agostinho de Hipona, quando pensa sobre os motivos da formação das comunidades, afirma que toda comunidade se une em torno de objetos comuns do seu amor. No seu livro A Cidade de Deus, afirma: “As tendências dos pesos são como que os amores dos corpos, quer busquem, por seu peso, descer, quer busquem, por sua leveza, subir, pois, como o ânimo é levado pelo amor aonde quer que vá, assim também o corpo o é por seu peso”². Ou seja, o homem se revela por aquilo que ama, pois o objeto de amor atrai o homem assim como um peso tende a cair.

Tarcísio e sua equipe de campanha podem não conhecer o pensamento de Agostinho, mas a divulgação de sua candidatura tem um quê aparente de genialidade: o reconhecimento de que pessoas se reúnem (isto é, formam comunidades) em torno de algo comum.

No entanto, uma análise mais cuidadosa revela um problema estrutural. É impossível que Tarcísio represente as qualificações de todas as imagens. Por exemplo, Tarcísio não pode ser vascaíno e flamenguista ao mesmo tempo, nem judeu e umbandista. O mesmo problema pode ser percebido naqueles que compartilharam a hashtag “#EuAcreditoNoGordinho”: por mais que existam 155 tipos de identidades sugeridos pela campanha, o eleitor escolheu aquela imagem com a identidade que melhor lhe define, a despeito de sua universidade, gênero, religião, ou time de futebol.

Retomando Agostinho, a escolha pela melhor imagem não se dá apenas “racionalmente”. Há uma clara demonstração afetiva na nossa formação identitária. Existe uma lei natural inescapável, que é a busca que todo ser humano tem a uma fonte de sentido, o Sumo Bem, que é o objeto do nosso amor e lealdade últimos. Por exemplo, alguém pode dizer que “é do rock e acredita no Gordinho”, na medida em que, para essa pessoa, ela possui uma lealdade última à música, especificamente ao rock (sua “lealdade penúltima”, por assim dizer), e não ao samba ou ao funk, por exemplo.

Tarcísio, como qualquer um de nós, possui um compromisso com aquilo que ama. Qual seria, então, o amor de Tarcísio? Aquilo pelo qual ele se apega? Certamente diríamos que a lealdade de Tarcísio pertence aos ideais socialistas, o que se pode inferir pelo partido ao qual pertence (que fique claro: socialismo nos termos do PSOL). Independentemente das particularidades de seu pensamento, sua lealdade ao socialismo está acima da lealdade aos outros objetos selecionados para essa propaganda de sua campanha³. E por que razão? Como vimos em Agostinho, essa lealdade última não é apenas individual, é também comunitária — os homens se reúnem em torno de seu amor comum (concórdia)— e é justamente por isso que Tarcísio, representando aqui os ideais do socialismo psolista, se faz o elo que transcende todas as identidades.

Agostinho percebe que todos nós amamos umas coisas mais que às outras, pois as enxergamos em posições diferentes numa escala relacionada ao nosso amor último: a isto, ele chama de Ordem dos Amores (Ordo Amoris). Isso apresenta um outro problema, ainda mais profundo. Analisemos o discurso da campanha, que apresenta duas orações independentes: Eu sou cristão e Eu acredito no Gordinho (o sujeito, Eu, está implícito em ambas as orações). A primeira oração tem o verbo ser, que aqui faz a função de verbo de ligação, o que significa dizer que a próxima palavra (cristão) está conectada ao sujeito (Eu). E considerando toda a carga semântica de cristão, isso implica em dizer que ser cristão é uma declaração de uma lealdade última a Cristo. No entanto, se na primeira oração do período temos a afirmação de um estado, na segunda oração, vemos a afirmação de uma ação. Ao dizer Eu acredito no Gordinho, temos de lembrar que o verbo acreditar significa “dar crédito a alguma coisa, ter como verdadeiro”. Só pode dar crédito a alguma coisa quem tem “fundos”, por assim dizer. Assim, a campanha de Tarcísio aos cristãos tenta, nas entrelinhas, “ganhar capital” a partir da identidade cristã, num jogo no qual a religião é o caminho para ideologia (ou seja, se você é cristão, o socialismo psolista é a melhor opção para você). Se, ainda, formos para a etimologia da palavra acreditar, o verbo tem nas suas origens a intenção de dizer que “alguém põe o coração em algo”. Portanto, ao sugerir que alguém “seja cristão e acredite no Gordinho”, o discurso da campanha impõe um status de superioridade entre duas possíveis “lealdades últimas” (a religião e a ideologia), levando a escolha de uma em detrimento da outra. Se lembrarmos que Tarcísio representa, na campanha, o elo entre identidades múltiplas, o que o marketing do PSOL faz é pôr o eleitor em uma situação de troca da sua lealdade última por aquela do partido. No fim das contas, você se encontra entre Jesus e Tarcísio.

Outro exemplo significativo é a campanha de Jair Bolsonaro para presidente. Bolsonaro é conhecido também por seu apelo para que sejamos pessoas mais patriotas, que recuperemos o sentido do que é ser brasileiro, que acima das divisões partidárias, esteja o Brasil no nosso horizonte. Para sintetizar o espírito de sua campanha, Bolsonaro escolheu como slogan: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

O problema reside nos papéis atribuídos a Deus e à Nação. Veja: temos Brasil, um substantivo próprio, que remete à Nação, acompanhado do advérbio acima que indica que o Brasil “está em posição superior em relação a alguma coisa” (por causa de uma elipse, o verbo estar é omitido nas duas orações). Até aqui, o processo vale para as duas orações desse período. A diferença é que, na primeira oração, o Brasil está acima de tudo. Tudo é um pronome indefinido que indica “a totalidade dos seres e das coisas”. Na segunda oração, Deus está acima de todos. Todos é um pronome indefinido plural que faz referência a “todas as pessoas, todo o mundo”, e é semanticamente inferior a tudo pois não abrange o nível da “totalidade dos seres”. Em outras palavras, o que Bolsonaro está dizendo nas entrelinhas é que, para manter a grandeza do Brasil, Deus é aliado do candidato do PSL contra todos os que querem usurpar a Nação.

Em Against Christian Politics [Contra a Política Cristã], Richard John Neuhaus percebeu que os cristãos conservadores americanos tinham um espírito de lutar “por Deus e pela Pátria” — algo que é similar ao que vemos em Bolsonaro. A justificativa dos conservadores era a de que os cristãos progressistas já tinham explicitado sua união entre fé e ideologia na esfera pública — agora seria a vez dos conservadores ocuparem esse espaço. Mas, quando Neuhaus analisa a situação, ele conclui que os conservadores cometiam o mesmo erro dos progressistas. Ele conclui:

A conflação da fé cristã com uma agenda política específica inevitavelmente leva a uma distorção da fé. Igualmente, é inevitável errar ao tentar atingir algo que pudesse ser digno de ser chamado “Política Cristã”, produzindo uma crise na qual as pessoas se sentiriam forçadas a escolher entre sua política e sua fé. Devoção a “Deus e a Pátria”, por exemplo, pode ser uma coisa encantadora, porém quando as duas coisas recebem um status de igualdade, “Pátria” estará aquém daquilo que as pessoas esperam enquanto se enfrenta o dilema de escolher “Deus ou Pátria”.

Só existe um Messias

O que Neuhaus tenta mostrar é que os cristãos correm o risco de possuírem uma relação com a política idêntica à daqueles que não fazem parte da igreja: o risco de depositar sua lealdade última na política. Pedro Dulci, em uma palestra recente, afirma: “nem mesmo o mais ateu dos militantes consegue abrir mão de compromissos de natureza religiosa em suas ações políticas”. Se cristãos ignoram que, por vezes, lealdades últimas estão em jogo, podem acabar abraçando cegamente uma ideologia cuja lealdade última não seja o Evangelho de Cristo.

Existem diversos motivos pelos quais as ideologias se tornaram um movimento de massas, passando a fazer parte do cotidiano de muita gente. No entanto, é preciso ainda perceber o porquê de as ideologias conseguirem conquistar os corações e as mentes, inclusive, de cristãos.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que as ideologias também são fenômenos religiosos. Ao atribuir a fonte de sentido do mundo a uma esfera da realidade complexa que vivemos (podendo ser o Estado, o Mercado, a Nação…), obrigando todo o resto do mundo a orbitar em torno desta nova “fonte de sentido”, fazemos dessa esfera um deus. Em Visões e Ilusões Políticas, David T. Koyzis afirma: “pelo fato de a religião abranger todas as áreas da vida humana e da própria existência, a idolatria tenta também sujeitar todo o restante da criação a esse deus imaginário”. Em suma, as ideologias exigem nossa devoção — a dedicação de cada área da nossa vida a elas.

Em segundo lugar, as ideologias são construídas sobre narrativas da História, e Koyzis demonstra, então, como elas se fazem paródias do Evangelho: as ideologias têm, nas suas narrativas, um momento de origem (ex: a formação da Nação, ou o Estado de Natureza), um problema fundamental (ex: o surgimento da propriedade privada), uma solução para este problema (ex: o retorno da liberdade de mercado) e um momento de consumação da vitória política (ex: o fim do capitalismo, ou o fim da dominação estrangeira, etc). Em suma, toda ideologia carrega, em si, uma versão falsificada da Criação, da Queda e da Redenção — os pilares narrativos do Evangelho.

Dizer que as ideologias são falsas não é o mesmo que dizer que elas são completamente más: embora sejam fruto do mundo caído, elas ainda são construídas sobre o mundo criado por Deus. Isso significa dizer que as ideologias elegem algo que é bom (como a comunidade política, a liberdade econômica ou a identidade individual) como se fosse o Sumo Bem — nossa lealdade última (e esse é o erro das ideologias). Em Você É Aquilo Que Ama, James K. A. Smith afirma que existe um conflito entre essas narrativas formadoras em nosso cotidiano, e se somos cristãos, vemos e vivemos um constante conflito entre o Evangelho e as narrativas do consumismo, do subjetivismo, e tantas outras mais que procuram treinar nossos desejos por meio dos hábitos estimulados por tais narrativas. Em outras palavras, não adianta que você saiba o Evangelho, se seus hábitos foram moldados pela narrativa nacionalista (ou socialista, ou liberal…).

É preciso reconhecer que, talvez, você não ame o que diz que ama. Timothy Keller, escrevendo para o New York Times, percebe que isso acontece por existir uma pressão para que o cristão se enquadre em um sistema político binário (Esquerda vs. Direita, ou, no caso dos EUA, Liberais vs. Conservadores). Baseado no contexto americano, ele diz:

Timothy Keller

Outra razão pela qual os cristãos atualmente não podem permitir que a igreja seja totalmente identificada com qualquer partido em particular é o problema que o especialista britânico em ética James Mumford chama de “ética do pacote”. Cada vez mais, os partidos políticos insistem que você não pode trabalhar em um assunto com eles se não abraçar todas as posições.

Essa ênfase em aceitar os pacotes fechados coloca pressão sobre os cristãos na política. Por exemplo, seguindo tanto a Bíblia quanto a igreja primitiva, os cristãos devem estar comprometidos com a justiça racial e com os pobres, mas também com a compreensão de que o sexo é apenas para o casamento e para a manutenção da família. Uma dessas visões parece liberal e a outra parece opressivamente conservadora. As posições cristãs históricas sobre questões sociais não se encaixam nos alinhamentos políticos contemporâneos.

Por isso, de acordo com Keller, alguns cristãos se sentem tentados a “assimilar e adotar integralmente o pacote inteiro de uma só pessoa para ter seu lugar à mesa”. E ao reduzir o que a narrativa do Evangelho ensina sobre a vida política ao que ideologias contemporâneas dizem em seu “pacote-fechado”, fazemos nossa confissão de fé à ideologia, e não a Cristo — é como se a conversão fosse “crer em Cristo e se tornar membro do Partido (preencha a lacuna)”, diz Keller.

Afinal, “um deus não precisa exigir que literalmente dobremos os joelhos ou lhe cantemos louvores para afirmar sua divindade. Basta que exija uma lealdade incondicional que supere todas as outras lealdades”¹⁰. E é exatamente este movimento que vimos nas campanhas dos candidatos do PSOL e do PSL.

Conversando com as ideologias

Timothy Keller apresenta, ainda no artigo publicado pelo New York Times, outra razão pela qual cristãos não devem deixar-se influenciar pelo apelo das ideologias à sua lealdade: “a maioria das posições políticas não são questões de ordem bíblica, mas de sabedoria prática”. Como vimos acima, as ideologias não são completamente más. De acordo com David T. Koyzis, “se as ideologias erram ao transformar um pedaço da criação num deus e se ao mesmo tempo essa coisa criada, todavia, permanece boa, parece razoável que as ideologias e seus adeptos tenham descoberto fragmentos da verdade que talvez nem os cristãos tenham conseguido enxergar”¹¹. A criação de Deus é plural, o que implica em dizer que existe a possibilidade da existência de diversas perspectivas possíveis sobre o mesmo assunto¹². E se cremos que Deus permanece fiel à sua criação, “isso explica, em grande medida, como é possível que as ideologias tenham uma percepção fragmentária da verdade. E indica, além disso, que nem a mais enganosa das ideologias é capaz de deformar completamente o mundo e a sociedade humana, distorcendo-os segundo sua própria imagem”¹³. Se as ideologias são construídas sobre a criação de Deus, ainda que elas sejam interpretações falsas do mundo criado, elas não anulam a bondade original — e aí está a base do diálogo, perceber onde e como as ideologias falham e acertam.

Isso é mais um motivo para lembrar que todo apelo para que o cristão identifique sua fé com alguma ideologia ou partido específico é um apelo idólatra. Muitas vezes, esse apelo é disfarçado sob o título de Política Cristã, mas, ao invés de ser uma política genuinamente cristã, não passa de um “batismo” das ideologias existentes (explicar como isso acontece é pauta para outro texto). Richard John Neuhaus alertou para o perigo dessa Política Cristã:

O grande professor protestante Reinhold Niebuhr (1892–1971) dedicou sua vida a alertar contra o perigoso sentimentalismo de uma “Política Cristã”. O amor obriga os cristãos a buscar justiça também através da política, insistiu Niebuhr, mas nunca devemos equiparar nossos julgamentos penúltimos sobre o que poderia servir a justiça com a Verdade última que nos impele a buscar e servir a justiça em primeiro lugar. Em suma, nunca devemos declarar nossa política como “Política Cristã”, implicitamente excomungando aqueles cristãos que discordam de nós.

O diálogo entre pontos de partida distintos não é uma impossibilidade histórica. Thomas S. Kidd, professor de História na Baylor University, em seu livro God of Liberty: A Religious History of the American Revolution [Deus de Liberdade: Uma História Religiosa da Revolução Americana] comenta sobre a relação entre o deísta Thomas Jefferson e o batista John Leland:

Thomas S. Kidd

Uma história religiosa da Revolução Americana levanta alguns apontamentos finais para que sejamos cautelosos em entender nosso tempo. […] Apesar da proeminência do providencialismo na era da fundação [dos Estados Unidos], os fiéis sempre foram muito cuidadosos quando se tratava de reivindicar que uma posição ou uma política era da preferência de Deus. Poucos assuntos têm a clareza moral e religiosa para garantir tais reivindicações. Mais ainda, as complexidades da política e os limites da nossa visão desabonam uma confiança plena de que estamos seguindo a vontade de Deus. Fiéis frequentemente se encontrarão em oposição, no debate político, de outros igualmente fiéis, ou de pessoas que não compartilham de suas crenças religiosas por completo. […] Precisamos estar aptos a apreciar diferentes opiniões e amplamente estimular o diálogo — evitando asserções de que “nós estamos do lado de Deus neste determinado assunto e você não está”.

As alianças do período fundador também oferecem lições para os politicamente conservadores. Como vimos na relação entre Thomas Jefferson (1743–1826) e John Leland (1754–1841), evangélicos deste período frequentemente cooperavam com pessoas que sustentavam crenças pessoais que eram muito diferentes de suas próprias. O batista Leland trabalhou com o deísta Jefferson porque estes dois homens partilhavam de uma visão sobre o papel da religião na vida pública. Ambos rejeitavam o patrocínio governamental de uma religião específica, mas também não queriam a remoção da religião do debate público. Evangélicos como Leland não tinham de concordar com a teologia pessoal de Jefferson para trabalhar com ele na política.¹⁴

Só existe uma revolução

Existe algum modo de transcender as ideologias e seus apelos por nossa devoção? Como superar os conflitos entre interpretações falsas da criação de Deus, ao mesmo tempo em que temos de escolher um dentre vários mensageiros das ideologias por meio do nosso voto?

Este mesmo conflito foi vivido pelos americanos em 2016, quando da eleição de Donald Trump. Jonathan Leeman, em The Election Is Over. Let’s Get Political [A Eleição Acabou. Sejamos Políticos] demonstra que a atividade política da igreja não se resume ao período eleitoral — a política na igreja acontece domingo após domingo:

A igreja local é o modelo de corpo político para o mundo. É a mais política das assembleias, pois representa Aquele que terá o julgamento final sobre presidentes e primeiros-ministros. Juntos nós confrontamos, condenamos e chamamos às nações com a luz das palavras do nosso Rei e sendo o sal com nossas vidas.
[cf. Mateus 5:13–16]

Em seu artigo Cristãos na Democracia: Uma Abordagem Evangélico-Reformacional, Igor Miguel cita um artigo do James K. A. Smith para o Washington Post, no qual Smith afirma que não existe uma diferença substantiva entre nosso tempo e o dos apóstolos: o período entre a ascensão de Cristo e seu retorno glorioso é uma “complicada combinação de tendência entre bem e mal”. Faltaria aos cristãos, então, a esperança cristã¹⁵. Só há uma fonte dessa esperança, que é o Evangelho. Se os cristãos não são continuamente reapresentados ao Evangelho do Cristo crucificado, certamente porão sua esperanças nos momentos de mudança política. Igor Miguel lembra que “foi da liturgia, do púlpito e da missão cristã que se espalhou o Evangelho do Reino que afirmava que Jesus Cristo é o kyriós (Senhor), esta mensagem que custou a vida de mártires em arenas e duras perseguições a cristãos, corroía qualquer concentração de poder ou divinização de autoridades temporais”. O Evangelho é a arma do cristão contra qualquer teoria política que tenha sua fonte de sentido em qualquer coisa que não seja Deus. O perigo de não perceber a radicalidade do senhorio de Cristo sobre todas as coisas (Mateus 28:18; Colossenses 1:12–20) e usar o Evangelho em nossa crítica social tem consequências terríveis. Peter J. Leithart, em Unmasking Monsters [Desmascarando Monstros], afirma que podemos cair no mesmo erro “das igrejas alemãs comprometidas com o nazismo, ou de padres ortodoxos que eram agentes duplos da KGB” — o erro de queimar incenso a Baal no nome de Jesus¹⁶.

Para James K. A. Smith, a celebração da Ceia é um dos momentos cruciais do culto no qual somos relembrados da verdadeira narrativa, daquela que fazemos parte: o Evangelho, onde Deus nos chama, por meio de Cristo, a fazer parte de Sua história.

Além da crítica social por meio da leitura dos sinais dos tempos, o Evangelho nos chama a agir. O chamado profético de crítica cultural da igreja só é completo quando vivemos o Evangelho que anunciamos. Jonathan Leeman conclui:

Paulo perguntou aos judeus da sua época, “Você que prega contra o roubo, ainda rouba?” [Efésios 4:28]

Eu tenho algumas perguntas a fazer. Você que defende a reforma das leis de imigração, você pratica a hospitalidade com estranhos?

Você que vota em prol dos valores da família, você honra seus pais e tem um amor sacrificial pelo seu cônjuge?

Você que fala contra o aborto, você agride física e emocionalmente sua namorada? Deixa que ambições deste mundo adiem a decisão de ter filhos? Nunca está em casa a tempo do jogo de futebol? Secretamente pratica o aborto quando a situação aperta? Ou você acolhe e ajuda as mães solteiras da sua igreja? Você encoraja à adoção?

Você que fala da distribuição de riquezas, você ajuda os necessitados da sua congregação?

Você que diz que “todas as vidas importam”, quem são seus amigos? Todos se parecem com você?

Você que, com razão, lamenta as injustiças sociais, você trabalha contra elas em sua própria congregação? Você se alegra com os que se alegram, e chora com os que choram?

Você que luta pelo casamento tradicional, você se submete ao seu marido, ou ama sua esposa, valorizando-a como se fosse seu próprio corpo e purificando-a com a Água Viva que é a Palavra de Deus?

Você que é preocupado com a economia e o mercado de trabalho, você obedece a seu chefe com coração sincero, não como um bajulador, mas como quem obedece a Cristo?

Você, que se importa com os impostos às empresas, como você trata seus empregados? Você os ameaça, esquecendo que seu Mestre e o deles está nos céus, e que não há parcialidade com Ele?

Você, que põe sua opinião nas mídias sociais, você partilha da Ceia do Senhor, em alegria, com o irmão de quem você discorda? Você ora pelo bem espiritual de quem diverge de você?

Leeman chama a atenção para que, quando a política se torna a nova religião, precisamos ouvir e ver, domingo após domingo, o Evangelho nas nossas igrejas, para que jamais nos esqueçamos do aviso: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos” (1 João 5:21).
Que nós, como igreja do Senhor, usemos do Evangelho para ler os sinais dos tempos (Mateus 16:1–12), e criticar todo aquele que tenta usurpar o lugar do Único que tem toda autoridade.

Notas

  1. ^ Sua campanha também encontra eco na campanha de Marcelo Freixo para deputado federal (#FechoComFreixo).
  2. ^ De Civ. Dei XI,28; citado em Paulo Hamurábi Ferreira Moura, Os fundamentos ético-morais da paz no De Civitate Dei de Santo Agostinho e sua contribuição para a atual construção da paz. PUC-Rio: 2010, p. 117.
  3. ^ Também é certo que a lealdade de Tarcísio ao socialismo do PSOL também está acima de outras ideologias — prova disso é que, obviamente, não há na campanha alguma imagem que diga Sou Liberal ou Sou Trabalhista.
  4. ^ Paulo Hamurábi Ferreira Moura, Os fundamentos ético-morais…, p. 129–132.
  5. ^ Paulo Hamurábi Ferreira Moura, Os fundamentos ético-morais…, p. 118, 122.
  6. ^ David Koyzis, Visões e Ilusões Políticas: Uma Análise e Crítica Cristã das Ideologias Contemporâneas. Vida Nova: 2013, p. 33. Eventos que mostram a realidade dessa devoção são o ato profético num batismo, em favor de Bolsonaro, e a romaria em prol da libertação do Lula.
  7. ^ Cf. Bob Goudzwaard, Idols of Our Time. InterVasity Press: 1984; Lesslie Newbigin, O Evangelho em Uma Sociedade Pluralista. Ultimato: 2016. Veja, aqui, o exemplo de uma narrativa que tem a Nação (o “ser brasileiro”) como fonte de sentido.
  8. ^ Cf. James K. A. Smith, Em Que História Você Está Inserido?. Em: Você É Aquilo Que Ama. Vida Nova, 2017.
  9. ^ O texto em português pode ser encontrado em lecionario.com.
  10. ^ David T. Koyzis, Visões e Ilusões Políticas. p. 127.
  11. ^ David T. Koyzis, Visões e Ilusões Políticas. p. 40–41.
  12. ^ Cf. os conceitos de Diversidade Direcional, Diversidade Contextual e Diversidade Estrutural em David T. Koyzis, Visões e Ilusões Políticas. p. 244–259.
  13. ^ David T. Koyzis, Visões e Ilusões Políticas. p. 41.
  14. ^ Thomas S. Kidd, God of Liberty: A Religious History of American Revolution. Nova Iorque: Basic Books, 2010; p. 254.
  15. ^ Cf. Michael Horton, Os Evangélicos Estão Com Medo? O Que Eles Têm a Perder?. Ultimato, 17/09/2018; Pedro Dulci, A Escolha dos Evangélicos É Decisiva Nessa Eleição?. Ultimato, 24/09/18.
  16. ^ Cf. James K. A. Smith, Cities of God: Cultural Critique and Social Transformation. Em: Introducing Radical Orthodoxy, Baker Academic: 2004.

--

--

Leonardo Cruz

Cristão, Presbiteriano, mestrando em História - UFF; voluntário na Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²).