Revolução e Descrença

Groen van Prinsterer, o princípio antirrevolucionário e sua concepção de História

Leonardo Cruz
9 min readMay 20, 2022
Guillaume Groen van Prinsterer, 1801–1876 (C. H. Hodges, 1823)

1. Esboço biográfico

Guillaume Groen van Prinsterer (1801–1876) nasceu na cidade de Voorburg, na Holanda. Filho de pai médico e de mãe herdeira de comerciantes, Groen (como era conhecido) teve uma criação dentro dos padrões da aristocracia holandesa. Tinha desempenho escolar notável por falar francês “como primeira língua”, ensinado por sua mãe¹, e aos 22 anos de idade concluiu os doutorados em letras e direito na Universidade de Leiden, defendendo as duas teses no mesmo dia.²

Groen trabalhou alguns anos como advogado, o que lhe oferecia tempo livre para realizar estudos históricos. Em virtude de sua proficiência neles, foi convidado em 1826 por Guilherme I (1813–1840) para produzir uma História Geral da Holanda, sendo posteriormente apontado como secretário real no ano seguinte. Neste período, ocorre a Revolução Belga (1830–1831), evento que desperta em Groen o interesse nos estudos acerca das revoluções ocorridas na Europa desde a erupção da Revolução Francesa em 1789.³

O casamento de Groen com Elisabeth van der Hoop (1807–1879) também configura um marco importante na elaboração de sua concepção sobre a História. Ele havia crescido no contexto do cristianismo holandês, marcadamente ligado à teologia reformada calvinista, que manifestava uma tendência chamada “liberal-conservadora”. Era uma tentativa de conciliar as declarações doutrinárias históricas do protestantismo calvinista com ideais iluministas. Groen demonstrava uma certa discordância com essa posição majoritária, embora a defendesse em razão de sua criação e formação acadêmica. Entretanto, é pela influência da esposa que Groen, aos 33 anos, adere a uma versão mais popular do calvinismo. Elisabeth, influenciada pelo Suisse Réveil [Avivamento Suíço], um movimento de cristãos calvinistas de ênfase conversionista e anti-iluminista, levava Groen nas pausas de suas viagens oficiais à igrejas cujos sermões eram pregados por pastores que defendiam a “fé cristã histórica” em oposição à “ortodoxia morta” dos protestantes mais próximos dos ideais iluministas. É dessa experiência que Groen retira a maior parte de seu repertório conceitual para analisar a Revolução Francesa.

Em 1833, Groen deixou o cargo de secretário real por questões de saúde e divergências com Guilherme I quanto ao tratamento da questão da pobreza. Ele ainda trabalhou como arquivista da Casa de Orange, tendo publicado em 14 volumes a correspondência dos membros da família real. Em 1840 inicia sua carreira política, trabalhando nela até o fim da vida, no ano de 1876, deixando como legado as bases teóricas do Partido Antirrevolucionário (ARP), fundado no ano de 1879 por um de seus seguidores, Abraham Kuyper (1837–1920).

2. Sua concepção de história

Quando da sua publicação das correspondências da Casa dos Orange, Groen foi duramente criticado pela família real em virtude da publicização de trechos que não eram favoráveis aos Orange. Groen, então, escreveu um artigo defendendo que a História deveria consistir em acesso irrestrito a fontes primárias confiáveis, na busca por uma História que fosse neutra e sem influência de pré-concepções. Aqui, van Dyke percebe uma aproximação entre Groen e o historiador alemão Leopold von Ranke (1796–1866).

Ataque à Praça de Bruxelas (Fidelio Coene, 1830)

Groen então se dedica a analisar as revoluções de seu tempo, e publica Revolução e Descrença no ano de 1847. Inspirado pela noção calvinista da soberania de Deus e de um universo criado a partir de seus decretos, Groen parte da premissa que existem esferas de competência, conceito que usava em dois sentidos. Primeiro, para se referir a distintos aspectos da existência, como quando argumentou que as divisões partidárias entre defensores dos ideais da Revolução Francesa não eram causadas exclusivamente por questões lógicas — para além destas, existiriam divergências originadas no “interesse” e “caráter” (provando que defensores de uma mesma teoria podem divergir). Em segundo lugar, Groen referia-se a distintas estruturas e instituições sociais, que teriam sido “suprimidas arbitrariamente” sob o prisma do contrato social, que forçaria uma leitura dessas estruturas e instituições a partir da lógica das convenções e dos acordos, sem buscar distinguir a “natureza” (conteúdo da teoria) e “direção” (objetivo da teoria) de cada uma delas.

Em razão desta convicção, Groen argumenta que sua defesa da “fé cristã histórica” não é fruto de um espiritualismo ingênuo. Ainda que veja uma “batalha espiritual” ocorrendo entre o que ele percebe como “a verdadeira fé” e a “apostasia” da Revolução, o historiador holandês propõe que, a partir da concepção de esferas de competência, sua busca é por uma ponte entre a fonte de sua fé, a Bíblia, e o conhecimento de seu “campo particular”, a História — e, assim, rejeitando ao mesmo tempo dois modelos de interpretação bíblica. De um lado estava a leitura moderna da Bíblia, que na visão de Groeen relativizava (ou até negava) seus pontos principais. De outro lado, existia a leitura enciclopédica, que buscaria na Bíblia uma resposta objetiva para solucionar qualquer problema.¹⁰ Sobre como se deveria realizar essa ponte, diz Groen:

O cristão estaria errado ao imaginar que, tendo a orientação das Escrituras, ele poderia viver sem conhecimento. Para ser capaz de trabalhar na tarefa que lhe foi designada com diligência e consciência, o cristão também precisa ter conhecimento preciso de tudo o que pertence ao seu campo particular. O temor do Senhor é o princípio do conhecimento, mas o início não é o todo: todo o conhecimento abrange também os outros elementos, nos quais o início é trabalhado. A verdade do Evangelho é o fermento — mas para obter um pão nutritivo e saboroso deve haver massa junto com o fermento: a substância sólida da aprendizagem. Portanto, a suficiência total da Palavra de Deus não é desculpa para letargia.¹¹

Esta ponte só é possível porque em Groen se percebe uma definição de “religião” que não se restringe ao aspecto institucional: para ele, religião era um “princípio de vida que está unido e permeia toda a existência”.¹² Como calvinista, crendo Groen que o cristianismo era o verdadeiro “princípio de vida”, aquilo que se contrapunha ao cristianismo era “apóstata e idólatra”, e este é o caso do que o holandês define por Revolução, em sua análise da Revolução Francesa em Revolução e Descrença.

Por Revolução (atenção na inicial maiúscula!), Groen não entende que os eventos da Revolução Francesa (e das subsequentes) sirvam em si mesmos para definir do que se trata uma revolução. Para ele, eventos deste tipo apenas são “contornos que revelam o espírito de um tempo”. Groen define Revolução como “uma inversão geral do espírito e do modo de pensar que agora é manifesta em toda Cristandade”, tendo suas “raízes” nas ideias de “liberdade e igualdade, soberania popular, contrato social e reconstrução artificial da sociedade com base em consentimento comum.” Para o historiador holandês, esta é a única explicação efetiva do por que a Revolução Francesa pôde acontecer: apenas uma alteração na “teoria abrangente” pode ser a “causa geral” do declínio e rejeição de todo um sistema político que era o Antigo Regime. Isto é profundamente ligado à sua definição de religião: “um princípio de vida que está unido e permeia toda a existência”.¹³

Embora Groen afirme que mudanças teóricas nesse nível produzam consequências que podem ser identificadas “com certeza matemática”,¹⁴ ele afirma também que a responsabilidade moral da agência dos sujeitos históricos não é descartada. Inspirado na compreensão calvinista do tema da idolatria na Bíblia, Groen afirma que os homens podem ter “prontidão para cooperar com a idolatria de sua época” porque investiram tanto tempo na construção dos ídolos que se tornaram dependentes deles. Groen, inspirado em François Guizot (1787–1848), passa a defender uma abordagem “fisiológica” da História, que busca perceber o crescimento e desenrolar dos fatos históricos em conexão com as ideias e teorias mais profundas que os fundamentam, bem como suas consequências, à semelhança de como os tecidos do corpo humano tem constituição própria, porém estão interligados e seus movimentos conjuntos causam ações e reações para além deles.¹⁵

Ao final de Revolução e Descrença, Groen dedica-se a demonstrar como a Revolução tornou-se a única resposta possível ao “antigo sistema”. Ele define cinco estágios da Revolução, que são momentos chave para compreender a alteração sistemática na política europeia. A primeira delas é a preparação, em que o contexto de longo prazo é explorado, do surgimento do Iluminismo e das tentativas de experimentar algumas ideias iluministas na corte francesa. Esse cenário criou uma estrutura de plausibilidade para a Revolução. A segunda etapa, do desenvolvimento, trata da crise do “antigo sistema” e do aparecimento da Revolução Francesa propriamente dita até os dias de Robespierre (1758–1794). Na terceira delas, a reação, Groen identifica a ação de um grupo “revolucionário moderado”, cujo objetivo era reagir aos excessos dos “radicais liberais” trazendo uma “revolução por meio da ordem” em virtude da instabilidade do período do Diretório, que é o momento da ascensão e queda de Napoleão (1769–1821). Na quarta fase, chamada de experimentação renovada, o historiador holandês explora os novos movimentos revolucionários entre os anos de 1815 e 1830, que resultaram na abdicação do rei Carlos X (1824–1830). Por fim, a fase da resignação é o momento em que trata do período após 1830, em que os ideais revolucionários encontram acomodação no novo sistema político.¹⁶

3. Considerações finais

As ideias de Guillaume Groen van Prinsterer, especialmente sua concepção de História presente em Revolução e Descrença, possuem ferramentas úteis para a investigação histórica no presente. Faça-se a ressalva que a obra está datada em relação às pesquisas mais atuais em relação à Revolução Francesa, como também sua forte influência na teologia calvinista.

Sua definição do conceito de religião como “um princípio de vida que está unido e permeia toda a existência” pode ser útil para historiadores que lidam com a religião em seu objeto de estudo, auxiliando-os a perceber aspectos que vão além dos limites sociais e institucionais, aspectos estes que servem como um pano de fundo para justificar determinadas estruturas de plausibilidade — e no caso da aplicação desse conceito que Groen faz em sua definição de Revolução, existe também a possibilidade de perceber como determinadas teorias ou ideologias ocupam espaços intelectuais que outrora pertenciam ao cristianismo (no caso do Ocidente) e como operam de maneira análoga à religião na contemporaneidade (mais uma vez, tendo o sentido atribuído por Groen).

Sua definição de esferas de competência pode auxiliar a compreensão da complexidade dos processos históricos como também ser um freio a reducionismos. Por causa dela, por exemplo, Groen defende a necessidade de um “ecletismo” do historiador, onde, a partir de uma “pedra de toque” bem definida, a pesquisa histórica consiga usufruir de ferramentas de diversas escolas.¹⁷ Embora Groen, num estilo tipicamente calvinista, encontre na Bíblia a sua “pedra de toque”, a recomendação ao ecletismo ainda é válida.

Por fim, sua concepção de Revolução é útil para debates a fim de refinar a definição deste conceito, visto que sua contribuição está em perceber como “revolucionária” toda teoria que sustenta uma descrença sistemática em relação a um sistema político e social vigente. Assim, ao concentrar a reflexão na “natureza e direção” da Revolução, é possível ter uma nova perspectiva acerca de como movimentos revolucionários possuem ideias e práticas distintas, mesmo que surjam no mesmo contexto.

Notas

1^ VAN DYKE, H. Translator’s Introduction. In VAN PRINSTERER, G. G. Unbelief and Revolution. Bellingham, EUA: Lexham Press, 2018. p. x.

2^ VAN ESSEN, J. L. Guillaume Groen Van Prinsterer and His Conception of History. In VAN ESSEN, J. L.; MORTON, H. D. Groen van Prinsterer: Selected Studies. p. 15.

3^ VAN DYKE, H. op. cit. p. x-xiii.

4^ VAN ESSEN, J. L. op. cit. p. 16.

5^ VAN ESSEN, J. L. op. cit. p. 19. Cf. VAN PRINSTERER, G. G. op. cit. p. 76–81.

6^ VAN DYKE, H. op. cit. p. xi, xxiii-xxiv. O Partido Antirrevolucionário foi extinguido no ano de 1980, quando se uniu outros partidos da democracia cristã holandesa para a criação do Apelo Cristão Democrático (CDA).

7^ Ibid. p. xi. No prefácio de Groen da 1ª edição de Unbelief and Revolution, há uma lista de obras sobre a Revolução Francesa consultadas pelo autor. Cf. p. VAN PRINSTERER, G. G. op. cit. p. xxxv.

8^ VAN PRINSTERER, G. G. op. cit. p. 113.

9^ Ibid, p. 22, 121–132.

10^ Ibid. p.

11^ Ibid. p. 6.

12^ Ibid. p. 4. Cf. VAN ESSEN, J. L. op. cit. p. 20.

13^ Ibid. p. 2–3.

14^ Ibid. p. 108.

15^Ibid. 83–84

16^ Essa exploração das fases da Revolução está presente nos capítulos 10 a 14 de Descrença e Revolução.

17^ “Nós precisamos ser, no sentido apropriado da palavra, ‘ecléticos’, usando uma sólida pedra de toque para reconhecer ouro genuíno onde quer que ele seja encontrado.” (p. 16)

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Leonardo Cruz

Cristão, Presbiteriano, mestrando em História - UFF; voluntário na Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²).